sexta-feira, 4 de abril de 2014

Do modernismo ao aborto: desafios e embates entre universidades e papas. Artigo de Marco Rizzi

IHU - A tentativa de colocar em sintonia o ensino das universidades católicas com os progressos científicos mais recentes determinou quase uma fratura com as instituições centrais da Igreja Católica.
A opinião é de Marco Rizzi, professor de literatura cristã antiga da Università Cattolica del Sacro Cuore, em artigo publicado no caderno La Lettura, do jornal Corriere della Sera, 30-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
As relações entre Igreja Católica e universidades sempre foram ambivalentes. Mesmo que não haja documentação certa, as universidades, provavelmente, surgiram por volta do século XII como desenvolvimento autônomo das escolas instituídas junto às igrejas catedrais. A primeira intervenção pontifícia documentada remonta a 1219, quando o Papa Honório III sancionou o direito da Universidade de Bolonha de conferir o título de "doctor" (ou seja, de docente, do latim docere).
Em troca da concessão de tais privilégios, os papas exerceram um certo controle sobre as universidades mais prestigiadas, geralmente através do bispo local. O mais célebre conflito entre a autoridade eclesiástica e o mundo universitário medieval remonta a 1277, quando o Papa João XXI solicitou que o bispo de Paris, Stefano d'Orleans, a investigação que levou à condenação da Faculdade de Artes parisiense e dos seus professores, incluindo Tomás de Aquino, já morto há alguns anos e proclamado santo menos de 50 anos depois, em 1323.
O Papa Eugênio IV instituiu em 1431 um escritório que supervisionava a Sapienza de Roma, universidade fundada em 1303 por Bonifácio VIII; a Cúria desenhada por Sisto V, em 1588, previa uma congregação para esse escopo e reiterava o antigo patronato pontifício sobre as universidades de Paris, Bolonha, Salamanca e ainda sobre Oxford, mesmo que a Igreja da Inglaterra já estivesse separada de Roma.
A congregação foi dissolvida por Clemente X (1670-1676), já que as universidades estavam cada vez mais inseridas nos mecanismos administrativos dos Estados nacionais, segundo uma tendência que depois se acelerou a partir da Revolução Francesa e Napoleão.
Só nos países de área germânica, as faculdades de teologia, católicas ou protestantes, foram mantidas vivas dentro das universidades estatais, reconhecendo aos bispos locais o direito de conceder ou revogar o título de "católico" ao ensino dos docentes individuais. O caso mais célebre de revogação é o que, em 1979, disse respeito a Hans Küng, que, no entanto, pôde prosseguir a sua atividade, mas fora da Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Tübingen.
Nos outros países, ao longo do século XIX, começaram a nascer universidades "católicas" no sentido corrente do termo, instituições que fazem referência à tradição e ao ensino da Igreja, embora integrando-se plenamente aos diversos sistemas formativos nacionais. Em 1835, a Universidade Católica de Louvain reviveu aquela fundada em 1425 pelo Papa Martinho V e por Giovanni di Borgogna, suprimida em 1797. Seguiram-se Dublin, em 1852, e, em 1875, as cinco francesas (Paris, Angers, Lille, Lyon, Toulouse) que, por lei, não podem se chamar universidades, mas sim Institut Catholique, embora concedendo títulos reconhecidos pelo Estado.
Hoje as universidades católicas são cerca de 200, reunidas em uma federação internacional (FIUC), e incluem instituições de direta emanação pontifícia (principalmente em Roma), promovidas por ordens religiosas ou episcopados nacionais, ou por entendidas de outro gênero (como no caso da Católica de Milão, cujo núcleo fundador original é representado por uma fundação, o Instituto Toniolo).
A tentativa de colocar em sintonia o ensino dado nessas universidades com os progressos científicos mais recentes determinou quase imediatamente uma fratura com as instituições centrais da Igreja Católica.
No início do século XX, a condenação do modernismo, ou seja, do uso de metodologias histórico-críticas para a investigação sobre os textos e os fenômenos religiosos, envolveu a remoção de inúmeros professores, incluindo o historiador Alfred Loisy, do Institut Catholique de Paris, e o biblista Pierre Batiffol, que era reitor em Toulouse.
Em 1908, Pio X confiou a uma congregação específica da Cúria a tarefa de supervisionar, além dos seminários, as universidades católicas. Dois anos depois, introduziu a obrigatoriedade do juramento antimodernista para os seus professores, determinando um potencial conflito com as legislações dos países que garantiam a liberdade de ensino também nas universidades não estatais, tanto que, na Alemanha, foram isentos dele os professores das faculdades de teologia católica. Depois de vicissitudes alternadas, o juramento foi definitivamente anulado por Paulo VI, em 1966.
Pouco tempo depois, abriu-se um novo fronte, ligado aos desdobramentos da teologia da libertação na América Latina. A Universidade Católica de Lima, fundada em 1917, esteve no centro de um longo conflito com o bispo da cidade, que é formalmente o seu chanceler. Este tinha exigido a modificação dos estatutos da universidade para poder se sentar no órgão diretivo, recebendo uma recusa por parte das autoridades acadêmicas, em proteção da própria autonomia. No caso, também teve o seu papel a orientação progressista da universidade peruana, cujo professor mais célebre foi um expoente de destaque da teologia da libertação, Gustavo Gutiérrez, além disso nunca diretamente condenado, ao contrário de Leonardo Boff, suspenso em 1985 do ensino no Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis, no Brasil.
Apesar da intervenção do prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Gerhard Müller, em favor da Universidade de Lima, a Secretaria de Estado vaticana, em julho de 2012, revogou os seus títulos de "Pontifícia" e de "Católica".
No dia 30 de janeiro passado, o Papa Francisco recebeu a cúpula da Notre Dame University, a maior universidade católica dos EUA, fundada em 1842 pelos sacerdotes da congregação missionária francesa da Santa Cruz. A universidade tem sido alvo de duras críticas pela concessão de um doutorado honoris causa ao presidente Obama, promotor da lei que obriga que as seguradoras de saúde ofereçam cobertura para a interrupção da gravidez. Críticas renovadas pela decisão da universidade de aderir ao dia contra a homofobia e as discriminações, além de instituir um "centro para as relações de gênero" voltado aos estudantes.
Nesse caso, no entanto, o bispo de Roma recomendou "que a Universidade de Notre Dame continue oferecendo o seu indispensável e inequívoco testemunho (...) da sua fundamental identidade católica, especialmente diante das tentativas, de onde quer que venham, de diluí-la".

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