terça-feira, 19 de junho de 2018

Mulheres são 'substancialmente' incompatíveis? As tentativas de vincular a masculinidade e o sacerdócio falharam

[unisinos]


“A verdade da questão é que Jesus, a princípio, não exclui as mulheres das ordens sagradas. As tentativas através dos tempos de evocar razões intrínsecas para vinculação de masculinidade ao sacerdócio falharam no teste. E a história dá o golpe nocauteador. As mulheres se mostraram como compatíveis”, escreve John Wijngaards, teólogo e escritor, professor emérito do Instituto Missionário de Londres, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 18-06-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
Nota do editor do NCR: A documentação original e completa para todos os textos citados neste artigo — e outros textos de suporte — pode ser encontrada no site de John Wijngaards  womenpriests.org. O site apresenta materiais introdutórios em 26 línguas.

Eis o artigo

O que estes papas têm em comum? Nicolau V (1454) autorizou conquistadores cristãos a escravizarem povos nativos. Inocente VIII (1484) aprovou a tortura e a execução de bruxas. Bento XIV (1745) condenou lucrar juros sobre empréstimos como um pecado mortal. Pio IX (1864) declarou que não-cristãos não poderiam obter a salvação eterna. João Paulo II (1994) ensinou que o sacerdócio é reservado somente aos homens. 
Todos defenderam erros com base em uma mistura de má interpretação das escrituras e preconceitos mal sedimentados. A única diferença é que, enquanto os outros ensinamentos errôneos foram descartados pela Igreja oficial, no mês passado, o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé repetiu a visão equivocada do Papa João Paulo II.
Dom Luis Ladaria escreve: "A impossibilidade de ordenar mulheres pertence a ‘substância’ do Sacramento da Ordem, um fato que a Igreja reconhece. Ela não pode mudar esta substância.... Não é apenas uma questão de disciplina, mas de doutrina". Essa é uma declaração que precisa ser exposta pela falácia que é. 
Tome nota: o arcebispo afirma que a exclusão das mulheres não é apenas uma prática que remonta a Jesus. Existe um obstáculo fundamental que está em jogo, uma característica que faz toda mulher incompatível intrinsecamente ao sacerdócio eucarístico de Cristo. O que ele está falando?

Desclassificação por nascimento?

Jesus escolheu apenas 12 homens na formação original dos Apóstolos. Este foi um ato simbólico. Ele queria que esses líderes da nova Israel coincidissem com os 12 patriarcas tribais. Mas ele nunca criou os ‘12’ como uma instituição permanente. Nem quis estabelecer uma norma permanente da liderança masculina. A intenção de instituir um sacerdócio somente masculino só foi atribuída a Jesus por gerações posteriores que projetaram sobre ele sua própria condenação da inferioridade feminina. 
Algumas mulheres presidiram a Eucaristia nas primeiras comunidades cristãs. Mas o contexto helenístico-romano em que a Igreja cresceu logo exclui essas "anomalias". A razão? As mulheres eram consideradas mentalmente e fisicamente inferiores. O direito romano as privou de cargos públicos. Como Agostinho sucintamente observou: "As mulheres estão abaixo dos homens por natureza e por lei." 
Em outras palavras, o obstáculo substancial para a ordenação de mulheres está em sua inferioridade como seres humanos. Ninguém explicou isso tão bem quanto Tomás de Aquino, anunciado pela Igreja como o campeão da ortodoxia. "Mesmo que uma mulher se tornasse objeto de tudo àquilo que é necessário para se conferir Ordens, ela não iria receber", ensinou Tomás, "porque, desde que a mulher está em estado de sujeição, o sexo feminino não pode significar a eminência de grau" (Summa Theologica, suppl 39, 1). 
Por que não? Como seus contemporâneos, Aquino acreditava que todo o futuro de uma criança está contido no esperma masculino. Na procriação, uma mulher só contribui com seu ventre — que é como um campo lavrado em que um grão de semente foi semeado (ST II, 18, 1). Toda mulher é falha. Aquino argumenta que já no nascimento a "prole feminina é deficiente e causada por acidente. A potência ativa do sêmen procura sempre produzir alguma coisa parecida consigo mesma, alguma coisa masculina. Então, se uma fêmea é produzida, isto deve ser porque o sêmen é fraco, ou porque o material [no útero] é inadequado, ou por ação de algum fator externo, tais como os ventos do Sul que fazem o ar ficar úmido... "(ST, I, 92, 1, anúncio. 1)".
Aquino diz que a "imagem de Deus no sentido pleno do termo só se encontra no homem". E que "as mulheres são criadas à imagem de Deus apenas na medida em que elas também têm uma mente" (ST, I, 93, 4 ad 1). Mas as mulheres não podem usar seu cérebro totalmente porque Deus "ordenou os homens, e não as mulheres, à atividade intelectual" (ST, I, 92, 1). Para usar uma metáfora, uma mulher pode ser parecida com um carro de luxo, mas lhe falta um motor adequado. 
Então é por isso que Jesus excluiu mulheres de seu sacerdócio? Elas simplesmente não eram totalmente humanas? O então cardeal Joseph Ratzinger, em seu comentário de 1977 na Inter Insigniores, rejeitou a inferioridade das mulheres como uma razão válida. Mas ele não reconhece que ao longo dos séculos este preconceito justificou a suposta 'tradição' de bloqueio das mulheres ao sacerdócio.
E se a inferioridade da mulher não é o obstáculo substancial no modo de ver de Ladaria, a que ele pode estar se referindo? João Paulo II fornece uma pista em sua Encíclica de 1988 Mulieris Dignitatem.

Longe do banco condutor?

Um comentário sobre Inter Insigniores da Congregação para a Doutrina da Fé (1976) já havia afirmado: "Cristo é o noivo da Igreja que ele ganhou para si mesmo com seu sangue. Usando essa linguagem, as revelações nos mostram por que ocorreu a encarnação de acordo com o gênero masculino. É impossível ignorar esta realidade. Por este motivo, só um homem pode aceitar o papel de Cristo, ser um sinal da sua presença, em uma palavra, 'representar' a ele nos atos essenciais da Aliança." 
Em Mulieris Dignitatem, João Paulo II expande sobre este tema. Foi a vontade de Deus desde o início, diz ele, que a encarnação acontecesse em um homem, um macho. "O noivo — o Filho consubstancial ao Pai enquanto Deus — tornou-se... o 'filho do homem', verdadeiro homem, um macho. O símbolo do esposo é masculino", escreve ele.
João Paulo II em seguida passa a explicar que podemos "legitimamente concluir" que esta foi a razão pela qual Jesus desclassificou as mulheres do serviço sacerdotal. Ele queria vincular a Eucaristia aos sacerdotes masculinos que poderiam o representar em seu papel de noivo masculino. Ele escreve que "é a Eucaristia acima de tudo que exprime a ação redentora de Cristo, o noivo, para a Igreja, a noiva. Isto é claro e inequívoco quando o Ministério sacramental da Eucaristia, na qual o sacerdote age ‘in persona Christi', é executado por um homem." Para continuar nossa metáfora, uma mulher não se qualifica para uma corrida, pois ela não é motorista, apenas espectadora. 
As especulações de João Paulo II são motivo suficiente para afirmar que a masculinidade do ordenando é substancial para o Sacramento da Ordem? Ele não pode alegar suporte real na tradição. Pelo contrário, como numerosos teólogos têm apontado, sua opinião contradiz a evidência esmagadora na qual a encarnação abraça tanto homens como mulheres. “A palavra se tornou carne", lemos no evangelho de João. A carne da palavra não tem um gênero. Como a teóloga irmã Elizabeth Johnson aponta, se a encarnação era restrita ao macho, a fêmea não seria salva, uma vez que o antigo princípio se aplica aqui quod non assumitur, non redimitur – "o que não é assumido [na encarnação], não é salvo"
A verdade da questão é que Jesus, a princípio, não exclui as mulheres das ordens sagradas. As tentativas através dos tempos de evocar razões intrínsecas para vinculação de masculinidade ao sacerdócio falharam no teste. E a história dá o golpe nocauteador. As mulheres têm sido vistas como compatíveis. 
Durante o primeiro milênio, dezenas de milhares de mulheres foram ordenadas diaconisas. Seu rito de ordenação foi preservado. Isso prova que as mulheres foram ordenadas assim como os homens, ou seja, sacramentalmente, para usar o termo clássico. Em outras palavras, elas eram qualificadas para o Sacramento das Ordens. Afinal o diaconato pertence às ordens. Como o Concílio de Trento, instruiu "se alguém disser que na Igreja Católica não há uma hierarquia constituída por ordenação divina, composta por bispos, padres e diáconos: que seja excomungado" (sessão IV, Canon 6). Então onde fica o prefeito da Congregação doutrinal?

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