sábado, 25 de fevereiro de 2017

O que é justiça social?

Por Élio Gasda*

É o pecado da injustiça social um escândalo gerado e alimentado por estruturas e mecanismos perversos.



Direito individual’ refere-se a Deus e a si mesmo e ‘direito social’ especifica as relações humanas. (Divulgação)

Na era da desigualdade tem sentido falar de justiça social? Vivemos o seu contrário.
A população mundial ultrapassa a marca de sete bilhões. Metade dela vive na pobreza ou na miséria. Enquanto isso, apenas oito homens possuem a mesma riqueza que os 3,6 bilhões de pessoas empobrecidas. Nos próximos 20 anos, 500 pessoas deixarão mais de US$ 2,1 trilhões para seus herdeiros – mais que o PIB da Índia, um país com 1,2 bilhão de habitantes (OXFAM, Relatório Uma economia para os 99%, 2017). O Brasil é um dos países mais injustos do planeta. Os irmãos Marinho (donos da Rede Globo) e mais cinco indivíduos (Jorge Paulo Lemann, Joseph Safra, Marcel Herrmann Telles, Carlos Alberto Sicupira, Eduardo Saverin) possuem juntos a mesma riqueza que mais de 100 milhões de brasileiros, algo em torno de R$285,8 bilhões (Revista Forbes). A concentração de riqueza está associada à remessa de fortunas a paraísos fiscais e sonegação de impostos. Bilionários se aproveitam da atual crise para reduzir salários dos trabalhadores, cortar direitos sociais e influenciar a política em benefício próprio.
É o pecado da injustiça social, um escândalo gerado e alimentado por estruturas e mecanismos perversos (João Paulo II, Sollicitudo rei socialis, n.36-37). “Enquanto os benefícios de uns poucos crescem exponencialmente, a maioria está ficando mais distante do bem estar de uma minoria feliz” (Papa Francisco, Evangelii Gaudium, n.56).
20 de fevereiro foi o Dia Mundial da Justiça Social. O conceito tem raízes na definição clássica que se encontra em Platão e Aristóteles: justo é dar a cada um o que é devido. Sentido adotado por Santo Tomás de Aquino. No século XVIII, Louis Taparelli d’Azeglio, jesuíta e herdeiro do pensamento tomista, foi o primeiro a utilizar a expressão justiça social, deduzindo-a da justiça geral. Existem dois tipos de direito. O ‘direito individual’ refere-se a Deus e a si mesmo. O ‘direito social’ especifica as relações humanas. A justiça social é a justiça na relação entre as pessoas, consideradas somente pelo fato de serem humanas. O termo foi introduzido na Doutrina Social da Igreja em 1931, pelo Papa Pio XI na Encíclica Quadragesimo anno.
A fonte da justiça social encontra-se na dignidade da pessoa humana criada à imagem e semelhança de Deus. “A igualdade fundamental entre todos os seres humanos deve ser cada vez mais reconhecida. Deve-se eliminar, como contrária à vontade divina, qualquer forma social ou cultural de discriminação, quanto aos direitos fundamentais da pessoa, por razão do sexo, raça, cor, condição social, língua ou religião... As excessivas desigualdades provocam escândalo e são obstáculos à justiça social” (Gaudium et spes, n.29).
Outra origem da justiça social é o principio do destino universal dos bens: “Deus destinou a terra com tudo o que ela contém para uso de todos os homens e povos; de modo que os bens criados devem chegar equitativamente às mãos de todos, segundo a justiça, secundada pela caridade” (Gaudium et spe, n.69). A terra pertence a todos. O cuidado pelo meio ambiente é uma questão de justiça. A crise ambiental e desigualdade social entrelaçam-se. A natureza pertence a todos.
Qual o alcance da justiça social? A economia é seu campo mais imediato. A Lei de justiça social, que deve orientar qualquer sistema econômico, proíbe que uma classe exclua a outra da participação dos lucros (Quadragesimo anno, n.57). Bento XVI destaca a grande importância da justiça social para o mercado (Caritas in veritate, n. 35). Para João Paulo II o mundo do trabalho é seu campo principal de aplicação. O salário e os direitos trabalhistas são seus instrumentos imprescindíveis. A prioridade do trabalho sobre o capital é exigência da justiça social (Laborem exercens, n. 8).
A justiça não se reduz a políticas de distribuição de riqueza. Ela exige o reconhecimento de pessoas e grupos discriminados em sua dignidade. O injustiçado não está apenas no campo econômico, mas também na identidade, pode ser o negro, o indígena, a mulher, o gay, o transexual, o deficiente, o idoso, etc. A justiça social exige reconhecer o outro como pessoa e como membro da comunidade. Ela suprime toda sorte de privilégios, no sentido de uma desigualdade de direitos. É a sistematização do valor da dignidade da pessoa humana. As instituições públicas devem adaptar o conjunto da sociedade às e suas regras e exigências. Portanto, “é preciso que esta justiça penetre completamente as instituições dos povos e toda a vida da sociedade” (Quadragesimo anno, n. 88). A justiça social é o primeiro critério de avaliação de um governo e de uma sociedade.
O alcance da justiça social é, simultaneamente, a redistribuição de riqueza e o reconhecimento do outro como imagem e semelhança divina. O amor a Cristo, aos irmãos e o anúncio do Reino de Deus são sua força inspiradora. A prática da injustiça invalida as orações, a liturgia e as peregrinações (Is 58,3-5, Am 5,21-25; 8,4-8; Jr 7,3-7). Ela é tão central na vida cristã que “ninguém pode sentir-se exonerado da preocupação pelos pobres e pela justiça social” (Evangelii Gaudium, n. 201). Felizes os perseguidos por causa da justiça porque deles é o Reino dos Céus (Mt 5,10). Em última instancia, sabemos o que é justiça social quando olhamos nos olhos dos pobres.
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*Élio Gasda é doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016). 

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