terça-feira, 3 de janeiro de 2017

A cultura da Paz requer o exercício do diálogo e do encontro

[domtotal]
Por Sinivaldo Silva Tavares*



Diante dos desafios do 'pluralismo cultural e religioso', a resposta da cultura ocidental tem sido caracterizada pela reafirmação de sua superioridade face às demais.



Diálogo inter-religioso é caminho para uma ética comum a todas as tradições religiosas. (assisiofm)

Iniciamos há poucos dias um novo ano. E todo início é recomeço. E recomeça-se sempre projetando e formulando bons propósitos. Dentre os vários propósitos, emerge o da construção de uma cultura de Paz. Vivemos, atualmente, uma situação de inédita e surpreendente proximidade entre as várias culturas e as distintas tradições religiosas do planeta. E isto repercute visivelmente nos mais variados setores da vida humana. As constantes migrações e o conseqüente deslocamento de numerosos grupos humanos têm fomentado a pluralidade de culturas e de religiões num mesmo território geográfico. A agravar ainda mais a presente situação é a entrada em cena dos novos fundamentalismos, teóricos e práticos, e de seus eventuais riscos para a convivência no Planeta.
Diante dos desafios lançados no contexto desta nova configuração, denominada de “pluralismo cultural e religioso”, a resposta da cultura ocidental tem sido caracterizada pela reafirmação de sua superioridade face às demais. Esta empáfia se revela na imposição autoritária da própria cultura mediante a sutil e subliminar ação dos Mass media e a gradual e perversa eliminação das culturas minoritárias, ideologicamente interpretadas como culturas ancestrais, antiquadas e contrárias à lógica do mercado expansionista. 
A resposta das grandes tradições religiosas, especialmente as monoteístas, não tem sido diferente: visivelmente marcada pela reafirmação rígida da própria identidade religiosa. Isso se torna claro na acentuação exagerada de seus próprios aspectos dogmáticos, disciplinares e morais. Parece-nos que o princípio “fora da própria religião não há salvação” está ganhando cada vez mais força, sobretudo, ao acordar reminiscências de um passado que julgávamos enfim superado. E o que é pior, este mesmo princípio vem contribuindo para o despertar de crassos fundamentalismos religiosos que trazem no próprio bojo uma fome incontida de violência.Face à gravidade desta situação, nossa posição não pode ser a da trincheira. É preciso abandonar de vez a pretensão de sermos a única cultura legítima e a única religião verdadeira. É preciso potencializar ao máximo esta inusitada proximidade entre as várias culturas e religiões, acolhendo as repercussões que tal situação provoca. Em nosso caso específico, de cristãos católicos, somos testemunhas de um incipiente processo de revisão dos erros cometidos no passado em ternos de desvalorização das outras religiões, consideradas geralmente como superstições a serem debeladas ou como falsidades a serem desmascaradas. O fato que o Concílio Vaticano II tenha reconhecido o princípio do respeito à liberdade religiosa criou as condições para que surgisse na Igreja uma atitude de tolerância e de respeito para com as outras tradições religiosas.E o resultado direto deste empenho eclesial tem sido um conhecimento maior das distintas tradições religiosas, o que tem propiciado uma maior aceitação de ambas as partes. Cresce paulatinamente na Igreja Católica a convicção de que, imprescindível se faz não repetir atitudes de superioridade e de intolerância, pois, na verdade, a igualdade de condições constitui pressuposto de base no processo de diálogo entre tradições religiosas diferentes. Nesse sentido, o empenho em prol de um autêntico diálogo inter-religioso parece ser o caminho privilegiado para a construção de uma ética comum a todas as tradições religiosas que possa, por um lado, resgatar o perfil mais genuíno de cada religião e, por outro, contribuir eficazmente na construção de sociedades mais justas e de um planeta habitável.Face à cultura em geral, não podemos nos entrincheirar numa espécie de gueto, nem emitir condenações como se falássemos sempre a partir de uma cidadela fortificada e imune a todo e qualquer influxo externo. De distintas partes, chega até nós o apelo de aprofundar a intrínseca cumplicidade entre cristianismo e cultural ocidental. E este apelo se torna ainda mais insistente, sobretudo por parte daqueles que assumiram o pesado fardo de pensar as raízes mesmas do ocidente enquanto fenômeno cultural. E por incrível que pareça, esta cumplicidade se revela, sobretudo naquelas posições, práticas e teóricas, que sentimos espontaneamente o desejo de rechaçá-las.Trata-se de uma cumplicidade, para todos os efeitos, paradoxal, porém, de uma estreita e íntima cumplicidade. Pois como gostava de repetir o grande Yves Congar, se a Modernidade se nos afigura como “um mundo sem Deus”, isso se deve, sobretudo ao fato da Igreja, durante séculos, ter anunciado “um Deus sem o mundo”. Por esta razão, a estreita cumplicidade que existe entre cultura ocidental e cristianismo é bem mais complexa e intrincada do que julgamos. Se, de fato, as coisas são assim, então o melhor é aprofundar ao máximo esta relação de reciprocidade entre Cristianismo e cultura ocidental para poder extrair dela suas próprias e intrínsecas virtualidades em vistas de um diálogo fecundo e esclarecedor.De nada adiantaria a nós católicos, recolher-se numa trincheira presumivelmente bem reparada, para daí disparar toda a artilharia contra posições erroneamente consideradas alheias e exteriores. É preciso, ao contrário, misturar-se com o mundo, assumindo com serenidade nossa parcela de responsabilidade na produção do que aí se encontra. Compartilhar a responsabilidade nos limites pode significar um primeiro e imprescindível passo na construção engajada e militante das eventuais alternativas. Não nos resta, portanto, que a inserção engajada no “nosso tempo” predispondo-nos ao diálogo transparente e sem preconceitos. Ao invés de repetir condenações do passado, é necessário valorizar, por exemplo, as novas possibilidades de vida e de esperança para o ser humano, propiciadas pelas recentes pesquisas científicas.A Igreja, portanto, jamais poderá se sentir “desobrigada” a participar do amplo debate acerca das questões cruciais do “nosso tempo”: a dignidade inalienável do ser humano, a justiça, participação e inclusão sociais e, enfim, o destino de nosso planeta. Isso não significa, de forma alguma, que ela se sinta autorizada a acordar sonhos adormecidos de teocracias históricas ou de fundamentalismos religiosos esclerosados. Pelo contrário, para a Igreja, esta situação parece se configurar como a ocasião propícia, um verdadeiro Kairós, para que ela possa recuperar a dinâmica própria do Mistério da Encarnação como sua matriz constitutiva e, portanto, como seu diferencial, sem o qual ela sequer pode ousar considerar-se como tal. É a partir desta específica dinâmica encarnacionista que a Igreja poderá participar, ousada e modestamente, eficaz e humildemente, da nova tessitura das distintas singularidades, das identidades regionais, da história comum da humanidade e do destino bom da vida do Planeta.
Resgatando o princípio caro aos pais da Igreja segundo o qual o que não foi assumido pelo Verbo de Deus também não foi salvo, os cristãos deste século se empenharão num engajamento capilar procurando “esperar contra toda esperança” (Rm 4,18) para poder, com maior credibilidade, “dar as razões da própria esperança” (1Pd 3,15). Esta atitude de inserção no mundo propiciará gestos e palavras que brotem dos abismos mais profundos e sombrios desta mesma realidade. Sem renunciar à Revelação como sua fonte primeira e vinculante, a comunidade dos fiéis se esmerará na articulação daquela palavra responsável que, justamente porque oriunda de Deus, emergirá dos sulcos mais profundos da história da humanidade e das histórias pessoais bem como dos meandros sutis do inteiro cosmos.
Recuperando, ademais, outro princípio constitutivo seu, o pneumatológico, a Igreja se ocupará de assumir sua missão eminentemente espiritual. Não se trata, aqui, de entender espiritual como uma região da pessoa, da história e do cosmos, separada e contraposta a outra: de caráter material ou profana. Importa, neste caso, recuperar o sentido genuinamente cristão do “espiritual” concebido como interioridade, intimidade. Neste sentido, a missão peculiar da Igreja, templo do Espírito Santo, é inserir-se nas realidades pessoais, históricas e cósmicas, para potencializar ao máximo suas intrínsecas virtualidades.E para que a Igreja possa assumir responsavelmente esta dúplice e peculiar incumbência, ela deverá recuperar a dimensão intrínseca e genuinamente religiosa do cristianismo. E isso por duas razões fundamentais. Por ser, em primeiro lugar, a dimensão religiosa a única talvez capaz de religar, como exprime a própria etimologia da palavra, os fios rompidos desta complexa teia que é a vida. Se a incumbência singular da fé cristã é reconstruir a partir das ruínas, coser de novo a partir das dilacerações e fragmentações, então como fazê-lo senão procurando resgatar simultaneamente sua dimensão intrinsecamente religiosa.
Ademais, num contexto em que pululam formas religiosas com a pretensão de responder a verdadeiras questões com falsas soluções, a Igreja não pode, de forma alguma, renegar sua intrínseca dimensão religiosa. Sobretudo com o ressuscitar de antigos e esclerosados fundamentalismos religiosos, teóricos e práticos, legitimando situações de miséria e de sofrimento injusto bem como estratégias interesseiras e políticas predatórias, as comunidades cristãs são chamadas a recuperar a genuína significação da fé como autêntica experiência de Deus. E isso contra toda forma de instrumentalização ideológica da fé por parte de algumas expressões religiosas que acabam colocando em risco a dignidade do ser humano, os valores responsáveis por uma convivência harmoniosa e justa entre as pessoas e o próprio destino da história e do inteiro planeta. 
*Frei Sinivaldo Silva Tavares, OFM. Frade franciscano. Doutor em Teologia Sistemática. Atualmente é professor desta mesma disciplina na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) e no Instituto São Tomás de Aquino (ISTA), ambos situados em Belo Horizonte, MG. 

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