quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Moral Católica: do legalismo à misericórdia

[domtotal]
Por Élio Gasda*


Parte das discussões em torno do ensino moral origina-se na ideia de Igreja que se tem.

 

Solução pastoral para casais irregulares: Acompanhar, discernir e integrar. (Divulgação)

Quatros cardeais, focados no pecado dos divorciados recasados, tornaram pública suas divergências sobre a Amoris Laetitia. A exortação de Francisco pede que os bispos de cada país a interpretem de acordo com a cultura local e avaliem cada caso. Há fatores que limitam a "responsabilidade e culpa" do divorciado. “Quero reiterar que nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais. […] em cada país ou região, é possível buscar soluções mais inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais” (Amoris Laetitia, n. 3). Em entrevista, Papa Francisco afirmou que segue o Concílio Vaticano II (Avvenire, 17/11/2016). O Ano da misericórdia recém-concluído é fruto de um processo de amadurecimento iniciado no Concílio.
Boa parte das discussões em torno do ensino moral origina-se na ideia de Igreja que se tem. Os quatro cardeais parecem representar os resquícios de uma visão hierárquica da Igreja surgida no Concílio Vaticano I (1869-1870). Uma visão ultrapassada, fundada nos poderes que a regem, absolutamente independente, com pleno poder legislativo, judiciário e coercitivo. Sua visão institucional, jurídica, vertical e uniformizada reduziu a moral católica a códigos disciplinares e mandamentos aplicáveis a todas as esferas da existência. Neste controle absoluto sobre o agir do cristão, as novas situações devem adaptar-se aos preceitos. Casuística.
No Concílio Vaticano II (1962-1965), que Francisco afirma seguir, passou-se de uma Igreja identificada com a hierarquia a uma Igreja peregrina e servidora da humanidade. A Igreja é Povo de Deus, Corpo de Cristo e Templo do Espírito Santo. Dela fazem parte todos os fiéis que acolhem o dom da fé e sao incorporados ao Corpo de Cristo pelo batismo. Nesta Igreja mistério de comunhão, o Evangelho é a primeira referencia para o ensino moral. A Bíblia deixou de ser interpretada como um manual de moral escrita por um Deus juiz que ordena e proíbe sem considerar a condição humana. O uso fundamentalista dos textos bíblicos está vetado. Mais dialogal, a Igreja reconhece que “não tem sempre respostas para todos os problemas” (Gaudium et spes, n. 33). Novos impasses não combinam com soluções automáticas. Portanto, “os leigos (...) não julguem serem os seus pastores sempre tão competentes que possam ter de pronto uma solução concreta para toda questão, mesmo grave, ou que seja esta a missão deles” (Gaudium et spes, n. 43).
Em Amoris Laetitia, Papa Francisco não só é fiel ao Concílio, mas o faz avançar. De fato, os problemas morais não se resolvem com decisões irrevogáveis tomadas de forma unilateral dispostos em decretos. A compreensão da Igreja como Povo de Deus resgata o discernimento como conceito central da moral. O discernimento (nn. 300-312) não substitui as consciências, mas as acompanha no processo de decisão respeitando a consciência dos fiéis: “Nos custa deixar espaço à consciência dos fiéis, que muitas vezes respondem o melhor que podem ao Evangelho no meio dos seus limites e são capazes de realizar o seu próprio discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas” (n. 37).
A solução para casais em “situações irregulares” consiste em um caminho de discernimento cuidadoso acompanhado por um presbítero e um julgamento final da consciência pessoal que ordena fazer isso ou aquilo (nn. 300-305). Inclusive em certos casos é inevitável a separação entre os  cônjuges na presença de violência ou de exploração contra os sujeitos mais frágeis (n.241). Divorciados recasados “não estão excomungados” (n. 243). Portanto, nada de simplificações: "Um pastor não pode se sentir satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações 'irregulares', como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas” (n. 305). Em nota se recomenda que “em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos” (n.351).
O pontificado de Francisco vai libertando a Igreja da obsessão com questões sexuais para priorizar a opção pelos mais pobres, a confrontar o pecado social, a idolatria do dinheiro e a economia que mata. A carta apostólica Misericordia et miseria marca o final do Jubileu das Pessoas Excluídas socialmente e instituiu o “Dia Mundial dos Pobres”. Nela, Papa Francisco afirma “que não existe pecado que a misericórdia de Deus não possa alcançar e destruir, quando encontra um coração arrependido que pede para se reconciliar com o Pai”. Nada mais lógico do que conceder aos presbíteros, os ministros da reconciliação, a faculdade da absolver as pessoas que incorreram no pecado do aborto. Esta é a melhor resposta que os quatro cardeais e seus simpatizantes poderiam receber. “Tudo isso vem de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por intermédio de Cristo e nos confiou o ministério da reconciliação” (2Cor 5,18). Ninguém pode pôr condições à misericórdia de Deus, muito menos um cristão.


*Élio Gasda: Doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016). 

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