terça-feira, 9 de agosto de 2016

O que significa propriamente 'criação do nada'?

[domtotal]
Por Sinivaldo S. Tavares, OFM*

Para criar do nada, Deus precisa, em primeiro lugar, constituir o nada.

Deus se nos revela sobremaneira como futuro em aberto.


Duas são as perspectivas para se considerar a “criação do nada”: a partir do Criador e a partir do ser humano, criatura na qual aflorou a consciência deste gesto singular de Deus e da peculiar relação existente entre Criador e criatura. Na ótica do criador, o criar a partir “do nada” é, rigorosamente falando, criar a partir de si mesmo. Neste sentido, tinha razão o Mestre Eckart quando insistia que a “creatio ex nihilo” era, no fundo, “creatio ex Deo”. Por ser o único Deus, sua presença é plena. Não existe nada que possa escapar aos raios de sua presença. Não existe, a rigor, coisa qualquer que se possa considerar “fora de Deus”. Deus na sua onipotência infinita se revela também como onipresente.
Contudo, para criar do nada, Deus precisa, em primeiro lugar, constituir o nada, não propriamente como um espaço fora dele, mas, como um espaço autônomo, ainda que dentro dele. E esta constituição do nada, como passo primeiro e imprescindível para a criação de todas as criaturas, se dá mediante uma retração quenótica do Criador. É como se o Criador se retirasse, reservando assim um espaço que pudesse ser ocupado por suas criaturas autônomas, apesar de continuar a envolvê-as por todos os lados. Talvez a metáfora do útero materno possa tornar mais clara esta concepção do criar do nada como processo de retração do Criador em vistas da autonomia da criatura. A geração do filho implica no fato da mãe lhe reservar um espaço no interior do qual seu rebento possa crescer com relativa autonomia. Não que o útero constitua um espaço separado do corpo da mãe. Ele demarca um espaço reservado para o crescimento do feto, mas que permanece envolto por todos os lados pelo corpo da mãe.
De forma análoga, o Criador se retrai para dar lugar às suas criaturas, respeitando-lhes a autonomia. Mas isto não significa que o Criador se desinteresse por elas ou que as trate com indiferença. Ao contrário, continua envolvendo-as por todos os lados com sua terna presença; embora as respeite em sua sadia autonomia e soberana liberdade. Em outras palavras, o Criador confere a suas criaturas uma consistência própria. Criar “do nada” significa ainda respeitar as criaturas na sua irredutível diferença. Criar “a partir do nada” implica em pôr diante de si o diferente como potencial alteridade face à própria singularidade de Criador e, portanto, seu interlocutor na trama histórico-salvífica, cujo desfecho querido e proposto pelo Criador é o encontro e a comunhão com suas criaturas.
Concebida a partir do ser humano, esta criação “do nada” constitui a condição da possibilidade de sua liberdade. Fomos queridos livres para que pudéssemos amar. Pois o amor pressupõe decisão livre e espontânea. Não se pode constranger alguém ao amor. Amor pressupõe liberdade. Ademais, porque criado e querido “do nada”, o ser humano é livre até para se considerar, para todos os efeitos, causa de si próprio, negando em tudo e por tudo sua umbilical relação com o criador.
Por outro lado, o ser humano também pode sucumbir à tentação de exercitar sua liberdade, porém, negando-a, preferindo viver como um eterno dependente do Criador, incapaz de empenhar a própria liberdade no exercício de uma sadia autonomia face ao mesmo. Nesse sentido, o ser humano vive como se estivesse na corda bamba, dividido entre o considerar-se dependente e o rebelar-se contra seu criador, vivendo como emancipado e isolando-se, portanto, do Criador e das demais criaturas.
Assumir a própria existência na mais genuína autenticidade significa aceitar sua condição primordial de criatura querida por Deus como “ser do nada”. O ser humano não constitui uma mera continuação ou extensão de seu Criador. A relação que existe entre Criador e criatura não se resume a uma continuidade pura e simples ou a algo que se dê de forma natural e espontânea. A relação entre Deus e nós é fruto de uma decisão livre, por parte de ambos, que se dá mediante relações de reciprocidade no bojo da qual possam emergir alteridades e singularidades.
Não fomos criados para permanecer numa dependência paralisante e castradora, comprometendo assim nossa singularidade. Não fomos queridos para permanecer num eterno infantilismo. Deus nos quer e nos trata como adultos. Quer que nos empenhemos de maneira lúcida e consciente na tarefa de corresponder a seus apelos. Quer que nossa resposta seja livre e madura, expressão de uma sincera vontade de corresponder a seu amor gratuito e inusitado para conosco. Quer, em suma, que nossa resposta também seja expressão de amor.
Nesse sentido, Deus não se encontra apenas na origem de nossa existência, como uma espécie de primeiro movente, sujeito de um impulso primordial, que, depois de ter dado origem a todo e qualquer movimento, permanece distante e indiferente à nossa sorte e ao nosso destino. Mas, ao contrário, por respeitar nossa autonomia e liberdade, Ele se coloca do nosso lado, dispondo-se a percorrer conosco, lado a lado, os caminhos difíceis da história, como nosso companheiro, interlocutor privilegiado. Mais ainda, Deus nos envolve por todos os lados e vem habitar no mais íntimo de nós, sem, contudo, violentar minimamente nossa autonomia e liberdade.
Deus se nos revela sobremaneira como futuro em aberto, atraindo a história e o cosmos todo para um final bom e plenificador. E porque se encontra no futuro, é que Ele continua e continuará sempre a criar o mundo “do nada” de sua insignificância, constituindo-o continuamente enquanto cenário da trama amorosa para com suas criaturas que terá seu desfecho na Parusia final. Este final dos tempos concebido não apenas como os tempos derradeiros, mas como a plenitude de todo o tempo, culminará na transfiguração não apenas da existência de cada uma e de todas as criaturas, mas na transfiguração total e completa do inteiro cosmos, potencializando e explicitando ao máximo suas mais íntimas inter e retro-relações.
Assim concebido, “o nada” a partir do qual Deus cria se revela como lugar de uma insólita e inusitada fecundidade. O nada não se confunde com a total ausência de toda e qualquer coisa. Ele é, em última instância, a possibilidade máxima da existência de todas as coisas. A “criação do nada”, compreendida escatologicamente significa a máxima potencialização do “nada” por desejo gratuito do Criador para que as criaturas oriundas dele convirjam, com lento vagar, ao encontro último e definitivo dos tempos derradeiros. Em outras palavras, sem faltar com o respeito para com a autonomia de suas criaturas, respeitando-as ao máximo em sua liberdade, o Criador as predispõe a celebrar com ele aquele encontro de comunhão reservado para a plenitude de todo o tempo.

*Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM é doutor em Teologia Sistemática pela Pontificia Università Antonianum, Roma. Durante treze anos, professor de Teologia Fundamental e de Teologia Sistemática na Faculdade de Teologia do Instituto Teológico Franciscano, Petrópolis. Desde 2012, professor de Teologia.

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