terça-feira, 16 de agosto de 2016

A Criação como expressão de solidariedade e de reconciliação

[domtotal]
Por Sinivaldo S. Tavares, OFM*

Porque apaixonado por suas criaturas, Deus jamais as deixará entregues à própria sorte.


Pelo fato de ter sido criado do “nada”, o ser humano foi querido pelo Criador como autônomo e, portanto, livre. O pecado humano só é possível dentro do horizonte da liberdade e autonomia que lhe foram oferecidas pelo Criador. Porque livres é que podemos chegar ao ponto de nos considerarmos emancipados e, por isso, separados do Criador e das demais criaturas. O pecado, assim concebido, resulta como uma possível resposta nossa à presença e interpelação do Criador em nossa vida. Somos, de fato, destinados ao encontro e à comunhão com as criaturas e com o Criador. Não fomos, para todos os efeitos, condicionados a isso. Esta comunhão, acolhida como nossa destinação primeira, nos é proposta, jamais imposta, pelo Criador.
O pecado consiste na concretização deste fechamento nosso com relação ao Criador e às criaturas. Ele é, nesse sentido, expressão da decisão livre do ser humano de viver por conta própria, não se preocupando em realizar aquela destinação primeira à qual se sente chamado. O ser humano pode, em virtude de sua liberdade, se autoconceber como razão de si mesmo e, portanto, comportar-se de conseqüência. Pode, na realidade, viver para si e em função única e exclusivamente de si e de seus interesses próprios.
Enveredando por este caminho, o ser humano pode ir se fechando cada vez mais em seu próprio mundo e, assim, selar definitivamente seu destino de isolamento e morte. Ele acaba empenhando, desta forma, sua própria liberdade na negação de sua identidade mais genuína, enquanto criatura querida por Deus e destinada ao encontro e à comunhão com Ele e com as demais criaturas.
É precisamente nas profundezas deste “nada do pecado” que o Filho unigênito de Deus mergulha para poder arrancar o ser humano preso aí dentro. Trata-se de um processo de autêntica kénosis, de um despojamento total, expresso mediante a radical proximidade ao diferente na sua mais extrema alteridade. O Filho de Deus se solidariza com o ser humano caído, desfigurado, vítima de suas decisões e, enfim, enredado em suas próprias malhas.
Como atesta um dos textos mais antigos do Segundo Testamento, o hino cristológico pré-paulino que se encontra na Epístola aos Filipenses 2, 5-11:
“Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus: Ele, subsistindo na condição de Deus, não se apegou à sua igualdade com Deus. Mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo, tornando-se solidário com os seres humanos. E, apresentando-se como simples homem, humilhou-se, feito obediente até à morte, até a morte numa cruz. Foi por isso que Deus o exaltou e lhe deu o Nome que está acima de todo nome. Para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho de quantos há no céu, na terra, nos abismos, e toda língua proclame, para glória de Deus Pai, que Jesus Cristo é Senhor”.
E esta solidariedade para além de toda e qualquer expectativa é expressão do amor gratuito de Deus para com cada ser humano, para com todos os seres humanos e para com todas as criaturas. No mistério da encarnação de Seu Filho unigênito, culminada na sua paixão solidária e redentora, o próprio Deus se aproxima em liberdade do ser humano enredado nas malhas do pecado. E o faz não propriamente para lhe impor sua vontade, mas para interpelá-lo uma vez mais e, desta vez decidida e definitivamente, ao amor.
O caminho livremente escolhido, porque querido, por Deus para realizar esta última e definitiva interpelação ao ser humano é a solidariedade. E, através desta sua escolha, Deus se revela sobremaneira como o servidor de toda humana criatura e de todas as criaturas suas. O expediente que Deus escolhe para demover suas criaturas do isolamento do pecado é o da sedução amorosa. Não sucumbe à tentação da ostentação do poder, como poderia ser, por exemplo, a de impor ao ser humano sua vontade mediante decretos e embaixadas. Ele mesmo vem ao encontro do ser humano e se solidariza com ele, assumindo sua condição e sua própria sorte, para, a partir do interior de sua situação, resgatá-lo em sua dignidade singular de filho de Deus e, portanto, irmão Seu e morada do Espírito Santo.
Em seu Filho encarnado, Deus penetra naquele espaço que representa a negação cabal de si mesmo, para se solidarizar com o ser humano pecador e, assim, realizar aquela reconciliação almejada, desde todos os tempos, por Ele. Trata-se de uma experiência, para todos os efeitos, kenótica, fruto do amor gratuito e desinteressado do Criador por suas criaturas. Nem mesmo o pecado é capaz de representar uma barreira intransponível a Deus. No seu imenso amor, Ele é capaz de transpor todo e qualquer obstáculo para realizar seu eterno desígnio de amor.
Porque apaixonado por suas criaturas, Deus jamais as deixará entregues à própria sorte. Muito menos as tratará com indiferença, mesmo naquelas situações em que suas criaturas se fecham a seu amor. Ele permanece sempre na espreita, aguardando toda e qualquer oportunidade para que possa revelar seu amor e comunicar-nos seus apelos. Jamais, porém, faltará com o respeito para com nossa liberdade. Respeitá-la-á até o fim sem com isso manifestar-se indiferente.

*Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM é doutor em Teologia Sistemática pela Pontificia Università Antonianum, Roma. Durante treze anos, professor de Teologia Fundamental e de Teologia Sistemática na Faculdade de Teologia do Instituto Teológico Franciscano, Petrópolis. Desde 2012, professor de Teologia.

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