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Os leigos não atuam na política por delegação clerical, mas em
nome próprio. Assim, quando um bispo, mormente em nome da Conferência
Episcopal, denuncia um “golpe” ou o rompimento da ordem institucional e
jurídica ali onde ela não existiu, invade o que não é de sua atribuição e
desconsidera, de modo injusto, a responsabilidade política dos leigos
católicos.
Recentemente, o Papa Francisco declarou, de modo muito veemente, que
“a porta de entrada Igreja é o batismo, e não a ordenação episcopal ou
sacerdotal” (Discurso do Papa Francisco aos 85 participantes na
Assembleia do Pontifício Conselho para os Leigos, no Vaticano, 17 de
junho de 2016). Assim, fica afastada qualquer possibilidade de que a
Igreja caia num clericalismo, vale dizer, que os sacerdotes, em razão de
sua condição de ordenado, imagine-se mais competente ou mais capaz do
que os leigos batizados para aquilo que é próprio dos leigos, ou seja, o
papel de, “por vocação própria, buscar o reino de Deus, ocupando-se das
coisas temporais e ordenando-as segundo Deus. Vivem no mundo, isto é,
no meio de todas e cada uma das atividades e profissões, e nas
circunstâncias ordinárias da vida familiar e social, as quais como que
tecem a sua existência. Aí os chama Deus a contribuírem, do interior, à
maneira de fermento, para a santificação do mundo, através do
cumprimento do próprio dever, guiados pelo espírito evangélico; e a
manifestarem Cristo aos outros antes e mais nada com o testemunho da
vida e com o fulgor da sua fé, esperança e caridade.” Aos leigos compete
“muito especialmente esclarecer e ordenar todas as coisas temporais,
com que estão intimamente comprometidos, de tal maneira que sempre se
realizem segundo o espírito de Cristo, se desenvolvam e louvem o Criador
e o Redentor.” (Vaticano II, Constituição Lumen Gentium, n.º 31). Os
leigos não exercem este papel por delegação do clero, mas em nome próprio.
Por isto, todo cuidado e toda responsabilidade é necessária, por parte
do clero, quando vai denunciar, opinar ou mesmo se manifestar em tais
assuntos. As manifestações do clero sobre estes assuntos fazer presumir a
insuficiência dos leigos, ou seu equívoco, e portanto equivale a um
corretivo. E por isso deve ser usado com extrema cautela. Sob pena de,
ao confundir seu papel clerical com suas próprias preferências
partidárias, o clérigo ofender, desnecessariamente, aos leigos e à sua
luta legítima.
Mesmo porque, em muitos casos, e de modo acidental, somente o clero
tem a possibilidade de fazer tais denúncias. Cito como exemplo a
situação insustentável da Venezuela, comandada por um governo
desastroso, em que o papel do clero tem sido essencial para alertar o
mundo, já que os leigos, oprimidos por um socialismo destrutivo, não
podem exercer a contento o seu papel ali. Quando o clero se esquece de
que este papel é estritamente excepcional, e se mete diretamente na
política, valendo-se da sua posição eclesial para promover suas próprias
preferências partidárias, invade aquilo que é distinto e pode agir de
modo, até, ofensivo. Além de perder credibilidade para quando as
denúncias forem realmente necessárias.
A normalidade democrática brasileira e a necessidade de que o clero respeite o laicato em sua esfera legítima.
Algo diferente acontece no Brasil. Aqui, temos um Judiciário
funcionando livremente, um Ministério Público atuante, um Poder
Legislativo democraticamente eleito e um Poder Executivo comandado por
um vice-presidente – em interinidade – também democraticamente eleito
pela mesma coligação que elegeu a presidente ora afastada. Este
afastamento deu-se por procedimento previsto na Constituição, monitorado
pela Imprensa, debatido ao vivo, e cuja instrução ainda não acabou. A
presidente afastada permanece no Palácio Presidencial, com seu Staff, e
circula nacional e internacionalmente com toda a liberdade. Dispõe de
estrutura partidária e apoio político de dois ou três partidos, diversos
parlamentares discursam diuturnamente em seu favor e toda a estrutura
estatal está sendo presidida pelo vice da chapa eleita com a própria
presidente afastada, que exerce o seu mandato com pleno respeito à
Constituição.
Causa preocupação, portanto, que um Bispo, com alto escalão na CNBB e
falando como tal, venha agora publicamente fazer afirmações tais como a
de que houve um “golpe” no Brasil, ou de que o atual governo não tem
legitimidade ou suporte constitucional. Ao fazê-lo, ele não simplesmente
ofende todos os batizados que trabalham no Estado, como toda a classe
política que também é composta de eventuais bons católicos e no limite,
ofende a todos os brasileiros que se esforçam por cumprir a lei e
obedecer ao governo. Porque, no limite, a um governo golpista ou ilegal,
que tivesse se instalado mediante desrespeito à Constituição, nós,
leigos católicos – em especial os que fazem parte da magistratura, como
eu – teríamos o dever de resistir, para fazer prevalecer a ordem lesada.
Mas apontar golpe onde não houve, mormente valendo-se de condição
episcopal ou de membro de conferência episcopal, sem apontar muito
especificamente em que se fundamenta, é induzir o rebanho a desrespeitar
o quarto mandamento, conforme o § 2199 do Catecismo da Igreja Católica:
“O quarto mandamento dirige-se expressamente aos filhos nas suas
relações com o pai e a mãe, porque esta relação é a mais universal. Mas
diz respeito igualmente às relações de parentesco com os membros do
grupo familiar. Exige que se preste honra, afeição e reconhecimento aos
avós e antepassados. E, enfim, extensivo aos deveres dos alunos para com
os professores, dos empregados para com os patrões, dos subordinados
para com os chefes e dos cidadãos para com a pátria e para com quem os
administra ou governa.”
Prudência e discernimento são essenciais.
Quando há um rompimento institucional, o clero é essencial para
denunciá-lo, mormente quando os leigos estão manietados. Mas valer-se da
condição clerical para levantar questões políticas desfundamentadas é
um desses usos desnecessários do múnus profético da Igreja, que o
enfraquece e desmoraliza para quando ele for realmente necessário. E
ofende desnecessariamente os leigos católicos, tão filhos da Igreja
quanto qualquer clérigo. Se discernimento é a palavra-chave do
pontificado do Papa Francisco, temos o direito de pedi-lo também aos
nossos bispos, especialmente quando falam pela CNBB.
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