sábado, 23 de julho de 2016

Haec Sancta (1415), um documento conciliar que foi condenado pela Igreja

[abim]
Por Roberto de Mattei (*)


O Concílio de Constança (1414-1418) está entre os 21 Concílios ecumênicos da Igreja, mas seu decreto Haec Sancta, de 6 de abril de 1415, é considerado herético, por afirmar a supremacia do Concílio sobre o Romano Pontífice. Em Constança, o Haec Sancta teve sua aplicação no decreto Frequens, de 9 de outubro de 1417, que convocava um Concílio para cinco anos mais tarde, o seguinte após outros sete anos, e depois um a cada dez anos.
Com isso se atribuía de fato ao Concílio a função de órgão colegiado permanente junto ao Papa, mas que na realidade lhe era superior. Martinho V, eleito Papa em Constança em 1417, na bula Inter cunctas, de 22 de fevereiro 1418, reconheceu a ecumenicidade do Concílio de Constança e tudo o que este havia decidido, embora com uma fórmula vaga e restritiva: “in favorem fidei et salutem animarum” [em tudo que for a favor da fé e da salvação das almas].
Não sabemos se o Papa concordava, pelo menos em parte, com as teorias conciliaristas, ou se foi forçado a esta atitude pela pressão dos cardeais que o tinham elegido. Mas o fato é que ele não repudiou o Haec Sancta, antes aplicou com rigor o decreto Frequens, fixando a data de um novo Concílio geral, que se realizou em Pavia-Siena (1423-1424), e designando a cidade de Basileia como sede da seguinte assembleia conciliar. No entanto, como ele morreu em 21 de fevereiro de 1431, esse segundo Concílio foi aberto pelo seu sucessor, Gabriel Condulmer, eleito Papa em 3 de março de 1431 com o nome de Eugênio IV.[Gravura abaixo]
Eugênio IV
Papa Eugênio IV

Já na abertura do Concílio de Basileia, explodiu a oposição entre os fiéis ao Papado e os partidários das teorias conciliaristas, que constituíam a maioria dos Padres conciliares. O braço de ferro conheceu alternâncias. Em uma primeira etapa, Eugênio IV retirou sua aprovação aos Padres rebeldes de Basileia. Depois, cedendo a pressões políticas e eclesiásticas, recuou, e com a bula Duduum Sacrum, de 15 de dezembro de 1433, revogou o ato de dissolução do Concílio já decretado, ratificando os documentos que havia emitido até aquele momento, e, portanto, também o Haec Sancta, que os Padres de Basileia proclamavam como a sua carta magna.
Quando o Papa percebeu que eles não se deteriam nas suas reivindicações, desautorou novamente o trabalho do Concílio, transferindo-o para Ferrara (1438), Florença (1439), e depois Roma (1443). A transferência, no entanto, foi rejeitada pela maioria dos Padres conciliares, que permaneceram em Basileia, continuando os trabalhos. Abriu-se nessa altura aquilo que entrou para a História como o pequeno Cisma do Ocidente (1439-1449), para distingui-lo do Grande (1378-1417) que o havia precedido.
O Concílio de Basileia depôs Eugênio IV como herege e elegeu o Duque de Sabóia, Amadeu VIII, como antipapa sob o nome de Félix V. De Florença, para onde o Concílio havia sido transferido, Eugênio IV lançou a excomunhão sobre o antipapa e os Padres cismáticos de Basileia. A Cristandade ficou mais uma vez dividida, mas se na época do Grande Cisma os teólogos conciliaristas haviam prevalecido, nesta fase o Papa foi apoiado por um grande teólogo, o dominicano espanhol Juan de Torquemada (1388-1468), que não deve ser confundido com o Inquisidor do mesmo nome.
Torquemada, distinguido por Eugênio IV com o título de Defensor da Fé, é autor de uma Summa de Ecclesia, na qual afirma com vigor o primado do Papa e a sua infalibilidade, e dissipa com grande precisão os mal-entendidos conciliaristas criados no século XIV, com base na hipótese de um Papa herege. Segundo o teólogo espanhol, é concretamente possível dar-se o caso de um Papa herege, mas a solução do problema não deve ser procurada de forma alguma no conciliarismo, que nega a supremacia papal. A possibilidade de heresia do Papa não compromete o dogma da infalibilidade, porque se ele quisesse definir uma heresia ex cathedra, perderia naquele mesmo momento o seu cargo (Pacifico Massi, Magisterio infallibile del Papa nella teologia de Giovanni de Torquemada, Marietti , Turim 1957, pp. 117-122). As teses de Torquemada foram desenvolvidas no século seguinte pelo seu colega italiano, o Cardeal Caetano.
O Concílio de Florença foi muito importante, por ter promulgado em 6 de julho de 1439 a bula de união Laetentur Coeli et exultet terra, que pôs provisoriamente fim ao cisma do Oriente, mas sobretudo por ter condenado definitivamente o conciliarismo, confirmando a doutrina da autoridade suprema do Papa sobre a Igreja. Em 4 de setembro de 1439, Eugênio IV definiu solenemente, e os gregos aceitaram, “que a Santa Sé Apostólica e o Romano Pontífice têm primazia sobre todo o universo; que o mesmo Romano Pontífice é o sucessor do bem-aventurado Pedro, Príncipe dos Apóstolos, é autêntico Vigário de Cristo, chefe de toda a Igreja, pai e mestre de todos os cristãos; que Nosso Senhor Jesus Cristo transmitiu a ele, na pessoa do bem-aventurado Pedro, o pleno poder de apascentar, reger e governar a Igreja universal, como está consignado nos atos dos Concílios ecumênicos e dos cânones sagrados”(DS-H, n. 1307 ).
Na carta Etsi dubitemus, de 21 de Abril 1441, Eugênio IV condenou os hereges de Basileia e os “diabólicos fundadores”, um século antes, da doutrina conciliarista — Marsílio de Pádua, João de Jandun e Guilherme de Ockham (Epistolae pontificiae ad Concilium Florentinum spectantes, Pontifício Instituto Oriental, Roma, 1946, p. 28 – pp. 24-35) —, mas contra o Haec Sancta tomou uma atitude hesitante, propondo aquilo que em termos modernos poderia ser chamado de “hermenêutica da continuidade”. No decreto de 4 de setembro de 1439, Eugênio IV afirma que a superioridade dos Concílios sobre o Papa, defendida pelos Padres de Basileia com base no Haec Sancta, é “uma má interpretação dada pelos mesmos Padres de Basileia, que de fato se revela contrária ao significado genuíno das Sagradas Escrituras, dos Santos Padres e do próprio Concílio de Constança” que o promulgou (Decreto de 4 de setembro de 1439, in Conciliorum Oecumenicorum Decreta, EDB, Bolonha 2002, p. 533).
O mesmo Eugênio IV ratificou o Concílio de Constança no seu todo e em seus decretos, excluindo “qualquer prejuízo aos direitos, à dignidade e à preeminência da Sé Apostólica”, como escreveu ao seu legado em 22 de julho de 1446. A tese da “hermenêutica da continuidade” entre o Haec Sancta e a Tradição da Igreja foi logo abandonada. O Haec Sancta é certamente um ato autêntico de um Concílio ecumênico legítimo, ratificado por três Papas, mas isso não basta para tornar vinculante no plano doutrinário um documento do Magistério que está em desacordo com o ensinamento perene da Igreja. Hoje acreditamos que do Concílio de Constança só podem ser aceitos aqueles documentos que não lesam os direitos do papado e não se contrapõem à Tradição da Igreja. Tais documentos não incluem o Haec Sancta, que é um ato conciliar formalmente herético.
Historiadores e teólogos explicam que o Haec Sancta pode ser repudiado, porque não foi uma definição dogmática, uma vez que faltam nele fórmulas típicas como anathema sit e verbos como “ordena, define, determina, estabelece, decreta e declara”. O verdadeiro alcance do decreto é de caráter disciplinar e pastoral, não implicando infalibilidade (ver, por exemplo, o verbete Concílio de Constança, do cardeal Alfred Baudrillart, no Dictionnaire de Théologie Catholique, III, col. 1221 – cols. 1200-1224).
Concílio de Trento (1545 a 1563)
Concílio de Trento (1545 a 1563)

O cisma de Basileia terminou em 1449, quando o antipapa Félix V chegou a um acordo com o sucessor de Eugênio IV, o Papa Nicolau V (1447-1455). Félix abdicou solenemente e o Papa o fez cardeal e vigário papal. A condenação do conciliarismo foi reafirmada pelo V Concílio Lateranense, pelo Concílio de Trento e pelo Concílio Vaticano I. Quem hoje defende a instituição do Papado deve estudar estas definições dogmáticas, e acompanhar esse estudo com os aprofundamentos fornecidos pelas obras dos grandes teólogos da Primeira e da segunda Escolástica, a fim de encontrar nesta mina doutrinária todos os elementos necessários para enfrentar a atual crise na Igreja. (Roberto de Mattei)
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(*) Fonte: “Corrispondenza Romana”, 20-7-2016. Matéria traduzida do original italiano por Hélio Dias Viana.

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