quarta-feira, 22 de junho de 2016

Até os cachorrinhos têm pão

Por Dom José Francisco




Em Marcos, encontra-se um dos relatos mais lindos a respeito das relações humanas.
É a história de uma mulher, grega, que pede a Jesus para curar sua filha de um espírito impuro (Marcos 7,25). Chamavam-se de espíritos impuros, naquela época, os pensamentos obsessivos que dificultavam a percepção de si mesmo e dos outros. Era provável que aquela mulher tivesse projetado suas próprias expectativas sobre a filha, de tal forma, que acabou ofuscando a auto imagem da menina. Era provável também, que ela considerasse a filha apenas como um caso difícil, desses que os pais levam aos profissionais para que eles “consertem”.
Nem a mãe reconhecia mais a filha, nem a filha reconhecia mais a mãe. Perderam-se. A mãe, contudo, percebe que as coisas não podem continuar assim. Então, pede a Jesus que “dê um jeito” naquilo que ela estragou.
Claro que Jesus não atende. Pelo contrário, faz a mulher se confrontar com seu próprio reflexo: “Não fica bem tirar o pão dos filhos e jogá-lo aos cachorrinhos” (Mc 7,27).
Lerda a mãe não era. No mesmo instante, reconheceu que o laço de união entre as duas estava frouxo, porque sua filha não havia recebido o alimento necessário. A mãe havia gasto o pão de seu carinho e de sua atenção com suas próprias necessidades e preferências: carreira, posses, aparência, realização. A filha morria à míngua de atenção. As dificuldades da filha brotaram da relação com a mãe, como se um demônio se tivesse enxertado entre elas.
Contudo, aquela mãe tem o dom de reconhecer: “É verdade, Senhor, mas também os cachorrinhos, debaixo da mesa, comem das migalhas dos filhos” (Mc 7,28). Esse é o ponto! Poderíamos traduzir assim: Senhor, está certo, minha filha não recebeu a suficiente atenção. Mas eu também tenho desejos, e eles são “meus cachorrinhos”. Eles também merecem atenção. Vejo. Daqui para frente, tentarei harmonizar os desejos com as necessidades.

Jesus entende e atende.
É interessante perceber que a mãe não disse que iria viver exclusivamente para a filha, sufocando-a com um amor que, às vezes, denuncia a culpa. Nem disse que continuaria negligenciando a filha. Ela mesma percebeu o lugar que lhes cabia, e ela mesma desfez o nó maléfico que as amarrava, criando um espaço onde ambas pudessem ser elas mesmas. Depois disso, nada mais se infiltraria entre as duas, nenhum pesado poder maligno.
Esse mesmo relato se encontra nos evangelhos de Mateus e Lucas, na história do centurião e seu servo. E de João, num pai poderoso e seu filho, à míngua de atenção. Sempre os mesmos sinalizadores de relações distanciadas.
Quem conhece as relações humanas pode avaliar a ansiedade daquela mãe. Ela não sabia o que fazer com aquela filha. A insanidade das relações provoca doenças e as doenças geram ainda mais insanidade. Somos todos doentes das relações. Em algum lugar de nossas almas precisamos de uma cura maior. Algo que só o dom da Graça pode conceder.
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Dom José Francisco Rezende Dias é Arcebispo da Arquidiocese de Niterói.

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