“Francisco faz um contundente alerta
contra o moralismo que muitas vezes reina em ambientes cristãos e na
hierarquia da Igreja Católica, visando fomentar o devido respeito à
consciência e à autonomia dos fiéis: “nos custa dar espaço à consciência
dos fiéis, que muitas vezes respondem o melhor que podem ao Evangelho
no meio dos seus limites, e são capazes de realizar o seu próprio
discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas. Somos
chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las” (AL
37). Nesta mesma direção, a formação moral das novas gerações deve se
realizar de forma indutiva, de modo que um filho possa chegar a
descobrir por si mesmo a importância de determinados valores, princípios
e normas, em vez de impô-los como verdades indiscutíveis (AL 264)”,
escrever Luís Corrêa Lima, professor no Departamento de Teologia da PUC-Rio, em artigo publicado na revista IHU On-Line desta semana.
Segundo ele, “a questão da homossexualidade
é colocada lembrando que a Igreja deve assumir o comportamento de
Jesus. Ele se oferece a todos sem exceção, com um amor sem fronteiras”.
Eis o artigo.
1. O pontificado de Francisco e o Sínodo
Francisco iniciou o seu pontificado com um firme propósito de renovação pastoral
na Igreja Católica. Ele a convoca a ir às “periferias existenciais”, ao
encontro dos que sofrem com as diversas formas de injustiças, conflitos
e carências. O papa critica uma Igreja ensimesmada, entrincheirada em
“estruturas caducas incapazes de acolhimento” e fechada aos novos
caminhos que Deus lhe apresenta (FRANCISCO, 2013a). Esta abertura
pastoral contemplou também os LGBT (gays, lésbicas,
bissexuais, travestis e transexuais), que constituem uma população com
crescente visibilização. Quando o papa retornou do Brasil a Roma, disse
algo que teve muita repercussão: “Se uma pessoa é gay, procura o Senhor e
tem boa vontade, quem sou eu para a julgar?
[...] Não se devem marginalizar estas pessoas por isso” (FRANCISCO,
2013b). Esta declaração inédita na boca de um papa teve desdobramentos.
Nesse mesmo ano, ele convocou o Sínodo dos Bispos
para tratar da família e seus desafios atuais, dando início a um
período rico e criativo. A mensagem cristã no campo da sexualidade e da
família tem uma grandeza e uma beleza inegáveis, mas também problemas e
questionamentos inevitáveis. Em certos pontos, há uma notável
disparidade entre o ensinamento da Igreja e vida da maioria dos fiéis.
No primeiro questionário
preparatório do Sínodo, enviado a todas as dioceses católicas do mundo,
perguntava-se, entre muitas outras coisas, que atenção pastoral se pode
dar às pessoas que escolheram viver em uniões do mesmo sexo e, caso
adotem crianças, o que fazer para lhes transmitir a fé. Entre 2014 e
2015, foram realizadas duas assembleias com três semanas de duração cada
uma. Ocorreram muitos debates e entrevistas, produziram-se amplos
relatórios, com uma notável repercussão na mídia. O Sínodo
é uma instituição consultiva, bem como os seus relatórios e
proposições. Após a sua realização, o papa publica uma exortação
pós-sinodal, que é o ensinamento oficial da Igreja a respeito dos temas
tratados. Neste caso, é o documento Amoris Laetitia, sobre o amor na família.
Mesmo sendo apenas consultivo, o Sínodo
traz indicações muito relevantes sobre a situação eclesial, os
consensos e as divergências existentes entre os bispos, que são muito
importantes para o discernimento do papa. Os relatórios produzidos desde a convocação deste Sínodo
apontaram claramente nesta direção: não mudar a doutrina sobre a
família, fundada sobre a união exclusiva e indissolúvel entre um homem e
uma mulher, mas ao mesmo tempo acolher sem condenar as pessoas que
vivem em outras configurações familiares. O valor deste processo, mais
do que os textos, é o debate aberto na Igreja sobre temas de sexualidade
e família como nunca se viu nas últimas décadas. Isto ajuda a formar
uma opinião pública que favorece a pastoral, a reflexão teológica e a
recepção criativa da exortação pós-sinodal.
Na preparação da segunda assembleia,
foram enviadas às dioceses perguntas sobre a atenção às famílias que
têm “pessoas com tendência homossexual”, e sobre como cuidar destas
pessoas à luz do Evangelho e propor-lhes as exigências da vontade de
Deus sobre a sua situação. As dioceses alemãs e suíças responderam
criticamente. Com base nas ciências humanas e na medicina, a orientação sexual
é uma disposição inalterável e não escolhida pelo indivíduo. Por isso,
falar simplesmente de “tendência homossexual” provocou irritação e foi
percebido como uma expressão discriminatória (CEA, 2015, n. 40). A maior
parte dos fieis considera justo o desejo de pessoas homossexuais
de terem relacionamentos amorosos e formarem uniões. A exigência de que
vivam em abstinência sexual foi considerada injusta e desumana. É
inaceitável que homossexuais sejam considerados apenas como
destinatários de uma pastoral, vistos como pessoas doentes ou precisando
de ajuda. Deseja-se que sejam tratados com respeito e que seja
apreciada a sua participação na Igreja. A impossibilidade de qualquer
tipo de analogia entre o matrimônio (heterossexual) e a união homossexual, afirmada no primeiro relatório sinodal,
não é aceita. Deseja-se que a Igreja reconheça, estime e abençoe as
uniões homossexuais, ajudando os membros destas uniões a viverem valores
importantes que têm, sim, analogia com o matrimônio (CES, 2015, n. 40).
Os questionários sinodais também foram respondidos por Juan Masiá, jesuíta radicado na Japão e pesquisador de bioética. Para ele, é necessário promover a acolhida de pessoas e de uniões homossexuais,
bem como de famílias assim constituídas, na vida cotidiana e
sacramental das comunidades eclesiais, sem discriminação. Deve-se
reconhecer respeitosamente a legislação civil sobre as uniões
homossexuais. É necessária uma revisão da hermenêutica bíblica, moral e
teológica sobre a sexualidade à luz das ciências humanas, especialmente
sobre a sexualidade pluriforme e as exigências educativas para uma
convivência inclusiva. Não se pode afirmar taxativamente como
ensinamento da Igreja a impossibilidade de analogia, mesmo remota, entre
uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimônio. Seria
presunçoso possuir o conhecimento certo e definitivo deste suposto
desígnio divino (MASIÁ, 2015).
Mesmo com estas contribuições questionadoras, prevaleceram no Relatório Final do Sínodo
os ensinamentos tradicionais da Igreja sobre a família fundada na união
heterossexual e indissolúvel, juntamente com um olhar de misericórdia e
uma busca de acolhimento dos que não vivem neste modelo. No
encerramento da última assembleia sinodal, o papa fez um balanço bem
realista das divergências entre os bispos:
Aquilo que parece normal para um bispo
de um continente, pode resultar estranho, quase um escândalo – quase! –,
para o bispo doutro continente; aquilo que se considera violação de um
direito numa sociedade, pode ser preceito óbvio e intocável noutra;
aquilo que para alguns é liberdade de consciência, para outros pode ser
só confusão. Na realidade, as culturas são muito diferentes entre si e
cada princípio geral [...] se quiser ser observado e aplicado, precisa
ser inculturado (FRANCISCO, 2015c).
Muitos bispos, bem como
a maioria dos fiéis de suas respectivas dioceses, não concordam com as
posições dos alemães, dos suíços e do jesuíta radicado no Japão. As exortações pós-sinodais são elaboradas a partir dos consensos alcançados nas assembleias sinodais. E, neste aspecto, a Exortação Amoris Laetitia
não é diferente. O magistério da Igreja em nível universal deve levar
em conta os diferentes contextos dos Continentes e dos países. A tarefa
de articular convergências e chegar a um denominador comum é complexa e
difícil.
O papa Bento XVI certa vez relatou a missão que recebeu quando era cardeal, no tempo de João Paulo II,
de coordenar o trabalho dos bispos para a elaboração do Catecismo da
Igreja Católica. O livro deveria mostrar em que a Igreja hoje crê e como
se pode crer razoavelmente. Ele confessa que ficou assustado com esta
missão e duvidou que isso fosse exequível. Como é que pessoas vivendo em
diferentes Continentes, não apenas geográficos, mas também intelectuais
e espirituais, poderiam chegar a um texto com coesão interna e
compreensível em todos os Continentes? Ele considera um prodígio o
cumprimento desta missão (BENTO XVI, 2012). Diante da complexidade de se
obter consensos e ao mesmo tempo de se respeitar as diferenças, o
magistério tende a ser cauteloso nas inovações. A evolução das ciências,
o senso dos fiéis e a teologia podem ajudar a Igreja a amadurecer seu
juízo, mas isto leva tempo e este amadurecimento não é homogêneo. Porém,
as igrejas locais, suas iniciativas apostólicas e a reflexão teológica
podem avançar mais, criando um ambiente eclesial favorável para mudanças
futuras de maior alcance.
2. A Amoris Laetitia (AL)
A Exortação do papa
sobre a família é uma ampla dissertação, partindo da premissa de que a
alegria do amor vivido nas famílias é também o júbilo da Igreja (AL 1).
Muitas situações e questões contemporâneas são contempladas, lançando
luzes sobre a vida familiar concreta. A Exortação está longe de ser um
texto doutrinado abstrato e frio. A grande novidade está na forte sensibilidade pastoral, com matizes muito cuidadosos na aplicação da doutrina. Para o papa, nem todas as discussões doutrinais,
morais e pastorais devem ser resolvidas com intervenção do magistério.
Naturalmente, é necessária na Igreja uma unidade de doutrina e práxis,
mas isto não impede que haja diferentes maneiras de interpretar alguns
aspectos da doutrina ou algumas consequências que dela decorrem. Em cada
país ou região, pode-se buscar soluções mais inculturadas, atentas às
tradições e aos desafios locais (AL 3).
Francisco faz um contundente alerta contra o moralismo
que muitas vezes reina em ambientes cristãos e na hierarquia da Igreja
Católica, visando fomentar o devido respeito à consciência e à autonomia
dos fiéis: “nos custa dar espaço à consciência dos fiéis, que muitas
vezes respondem o melhor que podem ao Evangelho no meio dos seus
limites, e são capazes de realizar o seu próprio discernimento perante
situações onde se rompem todos os esquemas. Somos chamados a formar as
consciências, não a pretender substituí-las” (AL 37). Nesta mesma
direção, a formação moral das novas gerações deve se realizar de forma
indutiva, de modo que um filho possa chegar a descobrir por si mesmo a
importância de determinados valores, princípios e normas, em vez de
impô-los como verdades indiscutíveis (AL 264).
Um dos desafios levantados é o das diversas formas de “uma ideologia, genericamente chamada gender
(gênero), que nega a diferença e a reciprocidade natural de homem e
mulher”. Afirma-se que ela promove uma identidade pessoal e uma
intimidade afetiva radicalmente desvinculadas da diversidade biológica
entre homem e mulher. Não se deve ignorar que o sexo biológico (sex) e o
papel sociocultural do sexo (gender) podem se distinguir, mas não se separar (AL 56).
A questão da homossexualidade
é colocada lembrando que a Igreja deve assumir o comportamento de
Jesus. Ele se oferece a todos sem exceção, com um amor sem fronteiras.
Às famílias que têm filhos homossexuais, reafirma-se que cada pessoa,
independentemente da própria orientação sexual, deve ser acolhida e
respeitada na sua dignidade, evitando-se toda discriminação injusta,
agressão e violência. Um respeitoso acompanhamento deve ser assegurado,
para que quantos manifestam a tendência homossexual
disponham da ajuda necessária para compreender e realizar plenamente a
vontade de Deus em sua vida. Porém, os projetos de equiparação das uniões homossexuais
ao matrimônio são rejeitados por não haver comparação entre tais uniões
e o desígnio divino sobre o matrimônio e a família (AL 250-251). A
acolhida de pessoas homossexuais, já ensinada no Catecismo (n.3528), é
trazida para o contexto das famílias com filhos homossexuais, onde isto é
mais urgente. A oposição feita à equiparação das uniões homossexuais ao
matrimônio, majoritariamente expressa no Sínodo, é reiterada na
Exortação.
Em toda e qualquer circunstância, perante quem tenha dificuldade de viver plenamente a lei de Deus,
deve ressoar o convite para percorrer o caminho do amor. A caridade
fraterna é a primeira lei dos cristãos, conforme o mandamento de Jesus:
“amai-vos uns aos outros, como eu vos amo” (Jo 15,12). Ela constitui a
plenitude da lei (Gal 5,14). Sem diminuir o ideal evangélico, deve-se
acompanhar com misericórdia e paciência as possíveis
etapas de crescimento das pessoas, que se constroem dia a dia. A
misericórdia do Senhor nos incentiva a realizar o bem possível (AL 306 e
308).
Não se pode dizer que todos os que estão
numa situação chamada “irregular” vivem em estado de pecado mortal,
privados da graça santificante. Um pastor não pode estar satisfeito
apenas com a aplicação da lei moral aos que vivem nesta situação, como
se fossem pedras atiradas contra a vida das pessoas. Por causa de
condicionamentos ou de fatores atenuantes, pode-se viver na graça de
Deus, amar e também crescer na vida da graça e da caridade, recebendo
para isso a ajuda da Igreja que inclui os sacramentos. Por isso, deve-se
lembrar aos sacerdotes que o confessionário, onde comumente se ministra
o sacramento da penitência, não é uma sala de tortura, mas o lugar da
misericórdia do Senhor. E a Eucaristia não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento aos que necessitam (AL 301, 305 e nota 351).
A questão do acesso aos sacramentos pelos que vivem em situação “irregular”, sobretudo os divorciados recasados, foi bastante polêmica desde a convocação do Sínodo.
Há décadas que fiéis, pastores e teólogos buscam uma solução para isto.
O papa não dá uma solução taxativa e abrangente, mas abre caminho aos
pastores para que, no acompanhamento dos fiéis e no respeito ao seu
discernimento, possam ministrar-lhes os sacramentos. As considerações
sobre os fiéis em situação “irregular” também se aplicam aos que vivem
em outras configurações familiares.
3. Em busca de caminhos
Como o próprio papa
alertou, as culturas são muito diferentes entre si, e cada princípio
geral precisa ser inculturado para ser observado e aplicado, com a
devida atenção às tradições e aos desafios locais. E os fiéis,
obedecendo à própria consciência, muitas vezes respondem o melhor que
podem ao Evangelho no meio dos seus limites, com discernimento perante
situações onde se rompem todos os esquemas. As conferências episcopais
trazem contribuições importantes a esta inculturação e à pastoral, que
são fruto de reflexões e práticas contextualizadas em diferentes
realidades, com suas tradições e desafios.
A Exortação anterior do papa Francisco, Evangelii Gaudium, faz menção a um documento dos bispos franceses (EG, nota 60) reafirmando a doutrina da Igreja
a respeito do matrimônio. Mas os bispos vão além. Eles repudiam a
“homofobia”, empregando explicitamente este termo, e felicitam a
evolução do direito que hoje condena toda discriminação e incitação ao
ódio em razão da orientação sexual. Eles reconhecem que muitas vezes não
é fácil para a pessoa homossexual assumir sua condição, pois os
preconceitos são duradouros e as mentalidades só mudam lentamente,
inclusive nas comunidades e nas famílias católicas. Estas são chamadas a
acolher toda a pessoa como filha de Deus, qualquer que seja a sua
situação. E numa união durável entre pessoas do mesmo sexo, para além do
aspecto meramente sexual, a Igreja estima o valor da solidariedade, da
ligação sincera, da atenção e do cuidado com o outro (CEF, 2012). Mesmo
que não se equiparem ao matrimônio, são reconhecidos valores positivos
nas uniões homoafetivas.
Outra menção do papa (EG nota 59) é um documento dos bispos norte-americanos
sobre o ministério junto a pessoas homossexuais, com diretrizes para a
assistência pastoral. Os bispos abordaram a questão do batismo de
crianças criadas por uniões do mesmo sexo. Eles não aprovam a adoção de
crianças por estas uniões. No entanto, aceitam que elas sejam batizadas
se houver o propósito de que sejam educadas na fé da Igreja Católica
(USCCB, 2006). Os bispos suíços, por sua vez, trataram
da bênção de pessoas homossexuais. Eles afirmam que estas pessoas podem
ser abençoadas, mas não a contração de uma união homossexual
para não haver semelhança com o matrimônio sacramental (CES, 2002,
nº3). Com isto, algumas possibilidades se abrem. No Ritual de Bênçãos da
Igreja, por exemplo, há bênção de uma residência, com orações pelos que
nela residem, bênção do local de trabalho e bênçãos para diversas
circunstâncias. Portanto, pode-se abençoar pessoas homossexuais sem
contrariar as normas da Igreja.
No Brasil, os bispos contemplaram este tema num documento sobre a renovação pastoral
das paróquias. Eles tratam das novas situações familiares com realismo e
abertura, incluindo as uniões do mesmo sexo. Os bispos reconhecem que
nas paróquias participam pessoas unidas sem o vínculo sacramental e
outras em segunda união. Há também as que vivem sozinhas sustentando os
filhos, avós que criam netos e tios que sustentam sobrinhos. Há crianças
adotadas por pessoas solteiras ou do mesmo sexo, que vivem em união
estável. Eles exortam a Igreja, família de Cristo, a acolher com amor
todos os seus filhos. Conservando o ensinamento cristão sobre a família,
é necessário usar de misericórdia.
Constata-se que muitos se afastaram e continuam se afastando das
comunidades porque se sentiram rejeitados, porque a primeira orientação
que receberam consistia em proibições e não em viver a fé em meio à
dificuldade. Na renovação paroquial, deve haver conversão pastoral para
não se esvaziar a Boa Nova anunciada pela Igreja e, ao
mesmo tempo, não deixar de se atender às novas situações da vida
familiar. “Acolher, orientar e incluir” nas comunidades os que vivem em
outras configurações familiares são desafios inadiáveis (CNBB, 2014,
nº217-218).
A tarefa de inculturar princípios gerais
em diferentes contextos, bem como a de ajudar os fiéis a formarem sua
consciência, deve ser assumida pela teologia. O papa exorta os teólogos a
prosseguirem no caminho do Concílio Vaticano II, de
releitura do Evangelho na perspectiva da cultura contemporânea. Estudar e
ensinar teologia deve significar “viver em uma fronteira”, na qual o
Evangelho encontra as necessidades das pessoas às quais é anunciado de
maneira compreensível e significativa. Deve-se evitar uma teologia que
se esgote em disputas acadêmicas ou que contemple a humanidade a partir
de um castelo de cristal. Ela deve acompanhar os processos culturais e
sociais, especialmente as transições difíceis, assumindo os conflitos
que afetam a todos. Os bons teólogos, como os bons pastores, devem ter “cheiro de povo e de rua”, e com sua reflexão derramar “óleo e vinho nas feridas dos homens”, como o bom samaritano do Evangelho (FRANCISCO, 2015a).
Para o papa, o teólogo deve enfrentar o
trabalho árduo de distinguir a mensagem de vida da sua forma de
transmissão, de seus elementos culturais nos quais em um determinado
tempo ela foi codificada. Não fazer este exercício de discernimento
leva inevitavelmente a trair o conteúdo da mensagem. Faz com que a Boa
Nova, verdadeiro sentido do Evangelho, deixe de ser nova e deixe de ser
boa, tornando-se uma palavra estéril, vazia de toda sua força criadora,
curadora e ressuscitadora. Assim se coloca em perigo a fé das pessoas de
nosso tempo. A doutrina cristã não deve ser um sistema fechado, privado
de dinâmicas capazes de gerar interrogações, dúvidas e questionamentos.
Pelo contrário, ela tem rosto, corpo e carne, que se chama Jesus
Cristo. É sua vida que é oferecida de geração em geração a todos os
seres humanos, em todas as partes do mundo (FRANCISCO, 2015b).
A releitura do Evangelho na perspectiva
da cultura contemporânea passa pelos estudos de gênero, que envolvem a
diferença e a reciprocidade entre homem e mulher. Convém fazer alguns
esclarecimentos e considerações. O termo “teoria de gênero”,
do qual derivam as suspeitas de “ideologia de gênero”, é uma má
tradução do inglês gender theory, pois neste caso theory não significa
teoria, mas o conjunto de estudos teóricos. Os estudos de gênero são
bastante heterogêneos. Às vezes eles se entrelaçam, mas outras vezes
correm em paralelo sem se encontrar. Não há uma teoria unificadora
contendo uma explicação abrangente. O que há é um acordo geral em
considerar os complexos comportamentos, direta ou indiretamente
concernentes à esfera sexual, como fruto de dimensões diferentes, não
totalmente independentes e por sua vez complexas: o sexo anatômico, a
identidade e o papel de gênero, e a orientação sexual. Não há uma
coerência necessária entre o sexo anatômico, a percepção da própria
identidade como masculina ou feminina, o desejo e a prática sexual. Na
diversidade bio-psíquica de homem e mulher, há indivíduos heterossexuais
e homossexuais, bem como indivíduos cisgêneros e transgêneros, que se identificam ou não com o sexo a eles atribuído ao nascerem.
Há uma perspectiva cristã de gênero
propondo não renunciar à diferença entre homem e mulher e à sua
importância fundamental, que tem raiz no sexo biológico e constitui o
arquétipo do qual se origina a humanidade. Que não se pense nos
processos sociais e culturais prescindindo inteiramente do componente
biológico, da estrutura genética e neuronal do sujeito humano. Mas
também que se evidencie o papel da cultura e das estruturas sociais,
reconhecendo-se o mérito dos estudos de gênero em captar a relevância
das vivências pessoais na definição da identidade de gênero. Isto
contribui para a superação de preconceitos causadores de graves
discriminações, que levaram e ainda levam à marginalização dos LGBT (PIANA, 2015).
4. Exemplos
A renovação pastoral promovida pelo papa também conta com gestos surpreendentes. No início de 2015, Francisco recebeu em sua casa a visita do transexual espanhol Diego Neria e de sua companheira Macarena.
A história de Diego é emblemática da condição transexual, do
preconceito feroz e do seu enfrentamento. Ele nasceu com corpo de
mulher, mas desde criança sentia-se homem. No Natal, escrevia aos reis
magos pedindo como presente tornar-se menino. Ao crescer, resignou-se à
sua condição. “Minha prisão era meu próprio corpo, porque não
correspondia absolutamente ao que minha alma sentia”, confessa. Diego
escondia esta realidade o quanto podia. Sua mãe pediu-lhe que não
mudasse o seu corpo enquanto ela vivesse. E ele acatou este desejo até a
morte dela. Quando ela morreu, Diego tinha 39 anos. Um ano depois, ele
começou o processo transexualizador. Na igreja que frequentava,
despertou a indignação das pessoas: “como se atreve a entrar aqui na sua
condição? Você não é digno”. Certa vez, chegou a ouvir de um padre em
plena rua: “você é filha do diabo”! Mas felizmente teve o apoio do bispo
de sua diocese, que lhe reconfortou e lhe animou. Diego se encorajou a
escrever ao papa Francisco e a pedir um encontro com ele. O papa o recebeu e o abraçou no Vaticano, na presença da sua companheira. Hoje, Diego Neria é um homem em paz (HERNÁNDEZ, 2015).
Outros encontros com LGBT ocorreram, como uma visita a um presídio na Itália em que o papa teve uma refeição à mesa na companhia de presos transexuais. Nos Estados Unidos, Francisco recebeu na nunciatura apostólica o seu antigo aluno e amigo gay Yayo Grassi,
e o companheiro dele. Grassi já tinha apresentado o seu companheiro ao
papa dois anos antes. Este relacionamento nunca foi problema na amizade
entre Grassi e o papa (GRASSI, 2015).
Gestos como estes valem mais que mil palavras. Se todas as famílias que
têm filhos ou parentes LGBT seguissem o exemplo do papa Francisco, recebendo-os em casa com seus companheiros, muitos problemas e dramas humanos seriam resolvidos.
No Brasil, começam a ser batizadas
crianças filhas de uniões homoafetiva. Um batismo de gêmeos (na foto
abaixo) ocorreu no Santuário do Cristo Redentor no Corcovado, Rio de
Janeiro, em 2014. O padre Omar Raposo, que fez a
celebração, declarou: “O batismo é para todos. A Igreja não nega o
batismo a ninguém. Ao contrário, é mandato de Cristo que todos sejam
batizados” (MACEDO, 2014). Assim a Igreja assume o comportamento de
Jesus Cristo, que se oferece a todos sem exceção, com um amor sem
fronteiras alcançando os que vivem em outras configurações familiares. A
expressão maior deste amor acolhedor e inclusivo é o batismo das
crianças.
5. Considerações finais
O pontificado de Francisco iniciou com um firme propósito de renovação pastoral da Igreja,
voltando-se às periferias existenciais, criticando com consistência uma
Igreja ensimesmada, entrincheirada em estruturas caducas incapazes de
acolhimento e fechada aos novos caminhos que Deus lhe apresenta. O Sínodo dos Bispos sobre a família, com perguntas questionadoras, e a Exortação Pós-sinodal
inovadora são passos muito importantes neste caminho. Cabe aos fiéis
terem a coragem de obedecer à própria consciência e responder sem medo
ao Evangelho em situações onde os esquemas se rompem. Cabe aos pastores
buscarem criativamente as formas de inculturação dos princípios gerais,
atentos às tradições e aos desafios locais. Cabe aos teólogos viverem na
fronteira, assumindo com vigor os conflitos que afetam a todos.
O caminho da renovação pastoral
é longo pois muitas estruturas caducas estão fortemente arraigadas na
mente e na prática de várias comunidades eclesiais, em muitos ambientes.
Certa vez, o papa deu um conselho precioso: “é melhor ficar longe dos
sacerdotes rígidos, eles mordem” (FRANCISCO, 2015d). Não são só os
sacerdotes rígidos que causam dano a tantas pessoas, mas também alguns
movimentos religiosos e fiéis rigoristas. O papa Bento XVI
já havia afirmado com lucidez que o cristianismo não é um conjunto de
proibições, mas uma opção positiva. E acrescentou que é muito importante
evidenciar isso novamente, porque essa consciência hoje quase
desapareceu completamente (BENTO XVI, 2006). É muito bom que os papas
reconheçam esse problema, pois há no cristianismo uma tradição
multissecular de insistência na proibição, no pecado, na culpa, na
ameaça de condenação e no medo. A historiografia fala de uma “pastoral
do medo”, que com veemência culpabiliza as pessoas e as ameaça de
condenação eterna para obter a sua conversão. Isto não se restringe ao
passado, mas inunda o presente e devasta muitas pessoas, sobretudo os LGBT.
O ponto de partida do ensinamento cristão deve ser sempre o seu conteúdo positivo que é Boa Nova. O testemunho e a pregação de Francisco são primorosos quanto a isto, incluindo a Amoris Laetitia
que começa com a alegria do amor vivido nas famílias. Mas os frutos são
virão se as práticas e a pregações rigoristas forem neutralizadas, se
todos forem devidamente alertados a ficarem longe delas. Os que
sintonizam com o papa, onde quer que estejam, têm um papel
imprescindível nesta grandiosa tarefa. A alegria do amor familiar deve inundar também os que vivem nas diversas configurações familiares.
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CEF (CONFÉRENCE DES ÉVÊQUES DE FRANCE). Elargir le mariage aux personnes de même sexe? Ouvrons le débat! 2012. .
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CNBB. Comunidade de comunidades: uma nova paróquia. 2014.
FRANCISCO. Solenidade de pentecostes. Homilia. 19/5/2013a.
____. Encontro com os jornalistas durante o voo de regresso. 28/7/2013b.
____. Carta. 3/3/2015a.
____. Mensagem. 1-3/9/2015b.
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GRASSI, Y. Em Francisco, não há espaço para a homofobia. 6/10/2015. .
HERNÁNDEZ, A. B. El bendito encuentro entre Francisco y Diego. 26/1/2015. .
MACEDO, R. Igreja abençoa filhos biológicos de casal gay. 20/11/2014. .
MASIÁ, J. Sexualidad pluriforme y pastoral inclusiva. 2015. .
PIANA, G. Sexo e gênero: para além da alternativa. 16/7/2014. .
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