Entrevista de Roberto de Mattei com o padre Claude Barthe
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O padre Claude Barthe [foto abaixo] é teólogo e autor de obras como A missa, uma floresta de símbolos, Os literatos e o catolicismo, Pensar o ecumenismo de outro modo.
Tendo sido um dos primeiros na França, no blog do semanário “L’Homme
nouveau” em 8 de abril, a exprimir suas reservas em relação à
recém-publicada Amoris lætitia, aproveitamos uma viagem àquele país para lhe fazer algumas perguntas.
O capítulo VIII da Amoris lætitia não é interpretável no sentido da Tradição
Roberto de Mattei: Reverendo padre, é com especial interesse que
desejo entrevistá-lo, porque em sua tomada de posição em relação à Amoris laetitia
o senhor não tentou interpretar a carta apostólica a partir de uma
chave de leitura tradicional — como o fizeram alguns num primeiro
movimento. E eu compartilho sua leitura.
Padre Claude Barthe: Honestamente, não vejo como se poderia
interpretar o capítulo VIII da Exortação no sentido da doutrina
tradicional. Isto seria fazer violência ao texto e não respeitar a
intenção dos redatores, que desejam claramente introduzir um elemento
novo: “já não é possível dizer que…”.
RdM: Entretanto, o que diz a Exortação não é assim tão novo.
CB: Não é novidade do lado da contestação teológica, o senhor
tem razão. Depois do Concílio, sob Paulo VI e João Paulo II, o grande
trabalho dos teólogos contestatários foi principalmente o de atacar a Humanæ vitæ
com livros, “declarações” de teólogos, congressos. Ao mesmo tempo, a
comunhão aos divorciados “recasados” (e também aos parceiros
homossexuais e aos concubinos) desempenhou um papel de reivindicação a
meu ver simbólico. Com efeito, já há muito tempo, a prática de
numerosíssimos sacerdotes, na França, na Alemanha, na Suíça e em muitos
outros lugares, é de admitir sem problema os divorciados “recasados” à
comunhão e de lhes dar a absolvição quando eles a pedem. O mais célebre
apoio a essa reivindicação foi dado por uma carta dos três senhores
bispos alemães das dioceses do Reno superior — Saier, Lehmann e Kasper —
de 1º de julho de 1993, intitulada: “Divorciados-recasados, o respeito à
decisão tomada em consciência”. Ela continha, aliás, bem exatamente as
disposições da atual exortação: nenhuma admissão teórica e geral à
comunhão, mas o exercício de um discernimento com um sacerdote, a fim de
saber se os novos parceiros “julgam-se autorizados pelas suas
consciências a se aproximarem da Mesa do Senhor”. Na França, alguns
bispos (como os de Cambrai e Nancy) publicaram atas conclusivas de
sínodos diocesanos no mesmo sentido. E o cardeal Martini, arcebispo de
Milão, em um discurso que era um verdadeiro programa de pontificado,
pronunciado em 7 de outubro de 1999, durante uma das assembleias gerais
do Sínodo para a Europa, havia também invocado mudanças da disciplina
sacramental.
De fato, na França, na Bélgica, no Canadá, nos Estados Unidos, as
coisas vão ainda mais longe: um número relativamente grande de
sacerdotes celebra uma pequena cerimônia por ocasião da segunda união
sem que os bispos o impeçam. Alguns inclusive encorajam positivamente
essa prática, como o havia feito Dom Armand le Bourgeois, bispo emérito
de Autun, no livro [quando o escreveu já havia renunciado] Chrétiens divorcés remariés
(Cristãos divorciados recasados, Desclée de Brouwer, 1990). Ordos
diocesanos, como o da diocese de Auch, “enquadram” essa cerimônia, que
deve ser discreta, sem o toque de sino, sem bênção dos anéis…
RdM: O senhor é da opinião de que o cardeal Kasper [foto ao lado] exerceu um papel-chave?
CB: No início, sim. Apresentado pelo Papa Francisco, pouco
depois de sua eleição, como “um grande teólogo”, ele preparou o terreno
mediante a exposição que fez no Consistório de 20 de fevereiro de 2014, a
qual causou um enorme barulho. Mas, em seguida, a investida foi
conduzida com um grande savoir-faire em três etapas. As duas
assembleias sinodais, em outubro de 2014 e outubro de 2015, cujos
relatórios finais integraram a “mensagem” kasperiana. E, entre as duas, a
publicação de um texto legislativo, Mitis Iudex Dominus Jesus,
de 8 de setembro de 2015, cujo arquiteto foi Dom Pinto, decano da Rota,
simplificando o processo de declaração de nulidade matrimonial,
especialmente graças ao processo expeditivo diante do bispo, quando os
dois esposos estão de acordo para pedir a nulidade. Certos canonistas
chegaram a falar, neste caso, de anulação por mútuo consentimento.
Na verdade uma espécie de núcleo dirigente, que agiu como “cúpula” do
Sínodo, constituiu-se em torno do muito influente cardeal Lorenzo
Baldisseri, seu Secretário-geral. Participavam desse núcleo Dom Bruno
Forte, arcebispo de Chieti, Secretário especial, (isto é, número dois do
Sínodo); Dom Fabio Fabene, da Congregação dos Bispos, Subsecretário; o
Cardeal Ravasi, Presidente do Conselho da Cultura, encarregado da
redação da Mensagem final do Sínodo às famílias, assistido notadamente
por Dom Victor Manuel Fernández, reitor da Universidade Católica da
Argentina; o jesuíta Antonio Spadaro, diretor da “Civiltà Cattolica”,
além de outras pessoas de influência, todas próximas do Papa, como o
bispo de Albano, Dom Marcello Semeraro, e o Arcebispo Paglia, Presidente
do Conselho para a Família. A eles se uniu o cardeal Schönborn,
arcebispo de Viena, que foi supervisor do Catecismo da Igreja Católica
e exerceu o papel de avalista da ortodoxia do texto, que o cardeal
Müller se recusava a assumir. Toda esta equipe forneceu um trabalho
considerável para chegar ao fim almejado…
RdM: Para terminar elaborando, depois da segunda Assembleia, um texto de mais de 250 páginas…
CB: E mesmo antes… O texto da exortação pós-sinodal já estava
definido em suas grandes linhas… em setembro de 2015, antes mesmo da
abertura da segunda assembleia do Sínodo sobre a família.
RdM: O senhor disse que foi um trabalho considerável para chegar ao fim almejado. Qual exatamente?
CB: É bem possível que, no espírito do Papa Francisco,
inicialmente não se tenha tratado senão de conceder um salvo-conduto
“pastoral” e “misericordioso”. Mas como a teologia é uma ciência
rigorosa, tornou-se imperativo enunciar princípios que justificassem a
decisão em consciência, adotada por pessoas que vivem em adultério
público, de se aproximarem dos sacramentos. Já desde o início, numerosas
passagens da Exortação preparam esta explanação doutrinária, que se
encontra no capítulo VIII, o qual versa sobre diversas “situações de
fragilidade ou imperfeição”, e especialmente daquela dos divorciados
engajados numa nova união “consolidada no tempo, com novos filhos, com
fidelidade comprovada, dedicação generosa, compromisso cristão,
consciência da irregularidade da sua situação e grande dificuldade para
voltar atrás sem sentir, em consciência, que se cairia em novas culpas”
(nº 298). Nesta situação “imperfeita” em relação ao “ideal pleno do
matrimônio” (nº 307), a Exortação coloca regras para um “discernimento
especial” (nº 301). Este é normalmente realizado com a ajuda de um
sacerdote “no foro interno” (pelos dois parceiros da união?), que
permitirá aos interessados estabelecer um discernimento de consciência
correto (nº 300).
Esse discernimento (do padre? dos parceiros esclarecidos pelo
padre?), devido a condicionamentos diversos, poderá concluir por uma
imputabilidade atenuada ou nula, tornando possível o acesso aos
sacramentos (nº 305). Um parêntese: não está dito se esse discernimento
se impõe a outros sacerdotes, os quais também ficariam obrigados a dar
os sacramentos aos interessados. De todos os modos, importa notar que o
texto não focaliza apenas o acesso aos sacramentos, que é tratado um
pouco embaraçadamente em pé de página (nota 351). Em contrapartida, ele
estabelece claramente um princípio teológico, resumido no nº 301, que
merece ser citado por extenso: “Já não é possível dizer que todos os que
estão numa situação chamada ‘irregular’ vivem em estado de pecado
mortal, privados da graça santificante. Os limites não dependem
simplesmente dum eventual desconhecimento da norma. Uma pessoa, mesmo
conhecendo bem a norma, pode ter grande dificuldade em compreender «os
valores inerentes à norma» ou pode encontrar-se em condições concretas
que não lhe permitem agir de maneira diferente e tomar outras decisões
sem uma nova culpa.”
O que pode ser destrinchado da seguinte maneira: 1º) devido a
circunstâncias concretas, pessoas em estado de adultério público
“ativo”, embora conhecendo a norma moral que o proíbe, se encontram
diante de uma situação tal que, se saíssem dela, cometeriam uma falta
(sobretudo em relação aos filhos nascidos dessa união); 2º) de sorte que
essas pessoas, que vivem em adultério público “ativo”, não cometem
pecado grave permanecendo nesse estado.
Na realidade, as consequências negativas que poderiam resultar da
cessação desse estado de adultério (o sofrimento dos filhos nascidos da
união ilegítima pela separação de seus pais), não constituem novos
pecados (“uma nova culpa”), mas efeitos indiretos de um ato
perfeitamente virtuoso, a saber, a cessação de um estado de pecado. Bem
entendido, a justiça deve ser respeitada e especialmente será preciso
assegurar a educação dos filhos da segunda união, mas fora do estado de
pecado.
Há, pois, uma oposição frontal com a doutrina anterior lembrada no nº 84 da Familiaris consortio,
de João Paulo II, a qual precisava que se graves razões obrigassem os
“recasados” a viverem sob o mesmo teto, então deveriam viver como irmão e
irmã. A nova asserção doutrinária resume-se assim: em certas
circunstâncias, o adultério não é pecado.
RdM: O senhor dizia que o instinto da fé está ausente ali?
CB: Isto não está de acordo com a moral natural e cristã: as pessoas que conhecem uma normal moral que obriga sub gravi
(o mandamento divino proíbe a fornicação e o adultério) não podem ser
escusadas de pecado e, em consequência, não podem ser consideradas em
estado de graça. São Tomás, numa questão da Suma Teológica bem
conhecida de todos os moralistas, a questão 19 da Iª IIæ, explica que é a
bondade de um objeto proposto pela razão que torna bom o ato da
vontade, e não as circunstâncias do ato (artigo 2); e que, se é verdade
que a razão humana pode enganar-se e considerar bom um ato mau (artigo
5), alguns erros não são jamais escusáveis, sobretudo o de ignorar que
não é lícito aproximar-se da mulher de seu próximo, porque isso está
diretamente ensinado pela Lei de Deus (artigo 6). Em outra passagem
igualmente conhecida dos moralistas, o Quodlibet IX, questão 7, artigo
2, Santo Tomás explica que as circunstâncias podem mudar a natureza de
um ato, mas não seu valor intrínseco. Por exemplo, golpear ou matar um
agressor é um ato de justiça ou de legítima defesa: pela circunstância
de tratar-se de uma agressão, o ato muda de natureza e a resposta não é
mais uma violência injusta, mas um ato virtuoso. Em contrapartida, diz o
Doutor comum, certas ações “têm uma deformidade que está ligada
inseparavelmente a elas, como a fornicação, o adultério e as demais
coisas desse gênero: elas não podem de nenhum modo tornar-se boas”.
Um menino do catecismo compreenderia essas coisas, dizia Pio XII num discurso de 18 de abril de 1952. Ele condenava ali a Situtionsethik,
a “moral de situação”, que não se baseia nas leis morais universais
como, por exemplo, os Dez Mandamentos, mas “nas condições ou
circunstâncias reais e concretas nas quais se deve agir, e segundo as
quais a consciência individual deve julgar e escolher”. Ele lembrava que
um fim bom jamais justifica meios maus (Romanos 3, 8), e que existem
situações nas quais o homem, e especialmente o cristão, deve sacrificar
tudo, até mesmo sua vida, para salvar sua alma. No mesmo sentido, a
encíclica Veritatis Splendor, de João Paulo II, reafirmando que
as circunstâncias ou as intenções jamais poderão transformar um ato cujo
objeto é intrinsecamente desonesto num ato subjetivamente honesto,
citava Santo Agostinho (Contra mendacium): a fornicação, as blasfêmias, etc., mesmo praticadas por boas razões, são sempre pecados.
RdM: O que fazer então?
CB: Não se pode contradizer as palavras de Cristo: “Quem
repudia sua mulher e se casa com outra, comete adultério contra a
primeira. E se a mulher repudia o marido e se casa com outro, comete
adultério.” (Mc 10, 11-12). O Prof. Robert Spaemann, filósofo alemão
amigo de Bento XVI, observa que toda pessoa capaz de refletir pode
constatar que se está em presença de uma ruptura. Eu não penso que seja
possível contentar-se em propor uma interpretação do capítulo VIII da
Exortação a qual concluísse que nada mudou. Aliás, é preciso levar a
sério as palavras do Papa, que no avião que o trouxe de volta de Lesbos
avalizou a apresentação do texto feita pelo cardeal Schönborn.
Em si mesma, a asserção teológica exposta na exortação é clara. O
dever da verdade obriga a dizer que ela não é admissível. Nem tampouco
as proposições anexas, como aquela que afirma que a união livre ou a
união de divorciados recasados realizam o ideal do casamento “de forma
parcial e analógica” (nº 292).
Então é preciso esperar, no sentido forte da esperança teológica, que
numerosos pastores, bispos e cardeais falem claramente, para a salvação
das almas.
Pode-se em contrapartida desejar, pedir, apelar por uma interpretação
autêntica — no sentido de interpretação do depósito da Revelação,
inclusive na recordação da lei natural ligada a ela — pelo magistério
infalível do Papa, ou do Papa e dos bispos unidos a ele, magistério que
discerne, afirmando em nome da fé o que é verdade e rejeitando o que não
o é.
Parece-me que hoje se entra, 50 anos após o Vaticano II, numa nova
fase do pós-Concílio. Naquela época, viu-se ceder — por certas passagens
sobre o ecumenismo e a liberdade religiosa — um dique que se acreditava
extremamente firme, do ensinamento eclesiológico romano, magisterial e
teológico. Edificou-se então outro dique para resistir à maré da
modernidade, aquele da moral natural e cristã, com a Humanæ vitæ
de Paulo VI e todos os documentos de João Paulo II sobre esses temas.
Tudo aquilo foi chamado de “restauração”, segundo a expressão do Relatório sobre a fé do
cardeal Joseph Ratzinger, edificou-se largamente sobre essas bases
colocadas para a defesa do casamento e da família. Atualmente tudo
acontece como se esse segundo dique estivesse a ponto de ceder.
RdM: Alguns poderão acusá-lo de ser excessivamente pessimista…
CB: Pelo contrário. Vivemos, creio eu, um momento decisivo da
história do pós-Concílio. As consequências de longo prazo do que
acontece atualmente são difíceis de prever, mas serão consideráveis. E
estou persuadido de que no fim elas serão positivas. Em primeiro lugar,
evidentemente, estou certo disso pela fé, porque a Igreja tem palavras
de vida eterna. Mas também, muito concretamente, porque a necessidade de
um retorno ao magistério — ao magistério enquanto tal — impor-se-á cada
vez mais nas perspectivas que deverão necessariamente ser elaboradas
para o porvir.
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(*) Fonte: “Correspondance Européenne”, 4-5-2016. Matéria traduzida do original francês por Hélio Dias Viana.
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