[unisinos]
“Nem todo o mundo ficará contente com o
documento, mas nós nos rejubilamos com Amoris Laetitia por ser um
documento que colocará o ensinamento católico sobre o matrimônio mais
uma vez na linha de frente de qualquer discussão sobre o matrimônio.
Acreditamos que ele assinale o início de uma Igreja mais aberta,
compreensiva, convidativa e misericordiosa e esperamos que, assim como
está moldando um desenvolvimento orgânico da abordagem pastoral de
questões morais, vá além, no longo prazo, para moldar também um
desenvolvimento da doutrina da teologia moral católica relacionada a
questões controvertidas da ética matrimonial e sexual”, concluem Todd A. Salzman e Michael G. Lawler, em artigo publicado pela revista IHU On-Line, nº 483, 21-04-2016.
Todd A. Salzman é Ph.D pela Universidade Católica de Louvain, na Bélgica. Michael G. Lawler
é graduado em Matemática pela Universidade de Dublin e em Teologia pela
Pontifícia Universidade Gregoriana – PUG, em Roma, e Ph.D em Teologia
Sistemática pelo Instituto Aquinas de Teologia, em Saint Louis. Ambos
lecionam no departamento de Teologia da Universidade de Creighton, nos
Estados Unidos. São autores do importante livro A Pessoa sexual. Por uma
antropologia católica renovada, traduzido para a língua portuguesa e
publicado, em 2012, pela Editora Unisinos.
Eis o artigo.
Tendo em vista que o Papa Francisco deu provas abundantes de que é um líder amoroso, misericordioso
e pastoral, nós esperávamos um documento que não mudasse qualquer
doutrina da Igreja, mas que oferecesse tanto diretrizes para viver uma
vida matrimonial cristã quanto princípios para lidar com situações
matrimoniais excepcionais que, no documento recém-publicado, são
chamadas de “situações irregulares”. Esse é, com efeito, o tipo de
documento que Francisco ofereceu em Amoris Laetitia
(AL). Trata-se de um documento que irá controlar a abordagem católica
tanto do casamento quanto de seus fracassos e o método e ensinamento da
teologia moral por muitas décadas no futuro.
Destaques
Começamos com o que consideramos alguns dos destaques do documento. Em primeiro lugar e em termos mais básicos, Amoris Laetitia
representa uma mudança profunda de ênfase para a teologia moral
católica em seu método ou sua abordagem na elaboração da ética
matrimonial e sexual. Historicamente, o método tem sido, em grande
parte, orientado por regras, legalista, focado em atos, estático e
dedutivo. Ele iniciava com normas absolutas — por exemplo, o não uso de
métodos artificiais de contracepção dentro de um relacionamento
matrimonial — e as aplicava com uma abordagem uniforme a todas as
pessoas, em toda parte, sem levar em conta considerações históricas,
culturais, contextuais, relacionais ou desenvolvimentais.
O método usado em Amoris Laetitia
é muito diferente. É um método orientado por virtudes, focado em
relacionamentos, dinâmico e desenvolvimental, bem como indutivo. Um
método focado em virtudes se concentra no caráter, e não em atos; no
ser, e não no fazer. Os atos são importantes, porque refletem o caráter
virtuoso e moldam esse caráter. Em Amoris Laetitia,
entretanto, o foco não está em regras e atos, e sim em formas de ser no
mundo, em que a pessoa é convidada a se empenhar para viver uma vida de
amor no serviço a Deus, ao cônjuge, à família, ao próximo e à sociedade,
dando-se conta de que a misericórdia de Deus é infinita quando nosso cumprimento desse convite é insuficiente.
O capítulo 4, “O amor no matrimônio”, é uma bela reflexão sobre a passagem poética de São Paulo a respeito da natureza do amor verdadeiro (1Cor 13,4-7)
e das virtudes associadas a ele. O amor é paciente, prestativo,
generoso, perdoador; o amor não é invejoso, não se ostenta nem se
irrita. É digno de nota o fato de que a virtude da castidade, que é
central para a abordagem histórica da teologia moral católica acerca do
matrimônio e da sexualidade e foi, muitas vezes, aplicada dedutivamente
como adesão legalista às normas prescritivas absolutas da Igreja sobre a
sexualidade humana, é mencionada uma única vez em todo o documento, e
isso no contexto da afirmação de que ela é “condição preciosa para o
crescimento genuíno do amor interpessoal” (AL 206).
Além disso, AL apresenta a vida matrimonial como “um caminho dinâmico de crescimento e realização” pessoal (AL
37). Cada casal unido em matrimônio é distinto e se encontra em
estágios singulares de sua capacidade relacional, emocional, psicológica
e espiritual, e o discernimento pastoral deve levar em consideração o
dinamismo e a particularidade. As implicações para o método da ética são
profundas. Ele exige o que o Papa João Paulo II chamou de “lei da gradualidade”, segundo a qual a pessoa humana “conhece, ama e cumpre o bem moral segundo diversas etapas de crescimento” (AL 295).
Também exige uma abordagem indutiva,
começando com as particularidades da respectiva situação para discernir
os valores que estão em jogo e o melhor caminho para realizar esses
valores à luz daquela particularidade. Essa particularidade enfatiza um
método moral que exerce o discernimento prudencial na avaliação de
questões éticas, especialmente de situações de relacionamentos
“irregulares”, e na busca de uma resposta que respeite essa
particularidade, ao mesmo tempo que se tenta viver mais plenamente à luz
do Evangelho. Já que há uma “variedade inumerável de situações
concretas” (AL 300), o discernimento pastoral
exige que se examinem casos específicos para discernir as virtudes e
valores que estão em jogo e para determinar quais ensinamentos da Igreja
são aplicáveis à luz dessas virtudes e valores.
Matrimônio
Em segundo lugar — isso é importante e
não deve deixar de ser percebido em meio à agitação midiática em relação
a situações irregulares —, os ensinamentos católicos tradicionais sobre
o matrimônio e a vida em família são reafirmados e muito incrementados
pela abordagem focada em virtudes adotada por Francisco.
O matrimônio é aquele entre um homem e uma mulher, o matrimônio
sacramental e consumado é indissolúvel, e “não existe fundamento algum
para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as
uniões homossexuais [casamento entre pessoas do mesmo sexo] e o desígnio
de Deus sobre o matrimônio e a família” (AL 251). Há, entretanto, uma
mudança significativa na abordagem do matrimônio. Desde o Concílio de Trento
no século XVI, o fundamento do matrimônio católico tem sido o direito
canônico, que deve ser obedecido. Essa abordagem, sustenta o Papa,
colocou sobre “duas pessoas limitadas [um] peso tremendo” (AL 122). Francisco
desloca a abordagem fundamental do direito para a virtude e ensina que o
matrimônio é um desafio vitalício que “avança gradualmente com a
progressiva integração dos dons de Deus” (AL 122).
Entre esses dons de Deus estão as virtudes do amor, generosidade, compromisso, fidelidade, paciência (AL 2), ternura (AL 3) e “a amabilidade do próprio Jesus ao se falar um com o outro” (AL 6; cf. também AL 8). Em vez de reiterar regras antigas ou oferecer um novo conjunto de regras para matrimônios duradouros, Francisco
procura destacar o tipo de caráter que as pessoas cristãs casadas são
conclamadas a ser de modo que elas possam fazer isso para que seu
matrimônio seja bem-sucedido e duradouro. A Igreja deveria ser grata por
essa transposição do direito para a virtude nesses tempos de crise para
o matrimônio em que muitas pessoas estão perguntando como o casamento e a família podem ser salvos.
Matrimônios plenificantes
Em terceiro lugar, embora o casamento
entre pessoas do mesmo sexo não possa ser considerado semelhante, nem
sequer análogo, ao matrimônio cristão, os gays, as lésbicas e as pessoas
transgênero “deve[m] ser respeitada[s] na sua dignidade e acolhida[s]
com respeito, procurando[-se] evitar qualquer sinal de discriminação
injusta” (AL 250). Um refrão que permeia todo o
documento é o de que Deus acolhe todas as pessoas na Igreja que é
comunhão. Muitas pessoas que apoiam o casamento entre pessoas do mesmo
sexo como uma forma estabelecida para gays e lésbicas viverem com
dignidade, e que creem que negar-lhes o direito de casar é uma
discriminação injusta, certamente ficarão desapontadas com esse juízo.
Dizemos a essas pessoas que ainda há esperança em Amoris Laetitia
para a realização da visão delas. Cremos que essa esperança reside no
tema da gradualidade que permeia o documento. À medida que um número
cada vez maior de católicos se sentir à vontade com o casamento entre pessoas do mesmo sexo
— e as estatísticas mundiais mostram que quase a maioria dos católicos
se sente à vontade com isso —, ele se tornará gradativamente tão aceito
quanto a comunhão em certas circunstâncias para pessoas divorciadas e
recasadas sem anulação.
O desafio é para os gays e as lésbicas
demonstrarem que seus matrimônios são tão plenificadores do ponto de
vista humano e cristão quanto os matrimônios entre heterossexuais. O
fato de Francisco salientar mais uma vez a doutrina
católica sobre a autoridade e inviolabilidade da consciência pessoal —
com a qual iremos lidar abaixo — aplica-se, naturalmente, a qualquer
decisão de gays e lésbicas católicas de se casar tanto quanto se aplica a
qualquer outra decisão moral.
Comunhão de divorciados
Em quarto lugar, um dos assuntos mais
acaloradamente discutidos nos Sínodos foi o da admissão à comunhão das
pessoas divorciadas e recasadas sem anulação. Seguindo sua recomendada
trajetória de amor e misericórdia, Francisco decreta
que “a lógica da integração é a chave do acompanhamento pastoral delas,
para saberem que não só pertencem ao Corpo de Cristo que é a Igreja, mas
podem também ter disso mesmo uma experiência feliz e fecunda”. Elas não
estão excomungadas e não devem ser tratadas como se estivessem (AL 299). A “lógica da misericórdia pastoral” (AL 307-312) e a “lógica da integração [são] a chave para o acompanhamento pastoral delas” (AL 299).
As situações dessas pessoas podem ser enormemente diferentes e seu
documento, admite Francisco, não pode ser “uma nova normativa geral de
tipo canônico, aplicável a todos os casos” (AL 300).
A solução para “situações irregulares”
consiste em um caminho de discernimento cuidadoso acompanhado por um
sacerdote e um julgamento final da consciência pessoal que nos ordena
fazer isso ou aquilo (AL 300-305). Como ensina Francisco, a Igreja é conclamada “a formar as consciências, não a pretender substituí-las” (AL 37).
A consciência
Em quinto lugar, colocar no primeiro
plano moral mais uma vez o antigo ensinamento católico sobre a
autoridade e inviolabilidade da consciência pessoal (cf. Dignitatis humanae, 2) é, em nossa opinião, um dos mais importantes ensinamentos de Amoris Laetitia. O Concílio Vaticano II
ensinou que, “no fundo da própria consciência, o ser humano descobre
uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer [...] a
sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado” (Gaudium et spes, 16; cf. também Dignitatis humanae, 2).
Francisco julga — e
concordamos que isso está correto — que “a consciência das pessoas deve
ser melhor incorporada na práxis da Igreja em algumas situações que não
realizam objetivamente a nossa concepção do matrimônio” (AL 303). Ele cita Tomás de Aquino
com frequência em todo o documento e especialmente seu ensinamento de
que, quanto mais descemos aos detalhes de situações irregulares, tanto
mais constataremos que princípios gerais são insuficientes (AL 304).
Como afirma o dito popular, o diabo sempre está nos detalhes, e só uma
consciência informada pode formar um juízo moral sobre os detalhes de
qualquer situação.
Novas perspectivas
Em primeiro lugar, ao apresentar o documento, o Cardeal Christoph Schönborn,
uma das principais vozes nos Sínodos de 2014 e 2015, insistiu — e
concordamos com isso — que, embora não haja mudança doutrinal em Amoris Laetitia,
há um “desenvolvimento orgânico da doutrina”. Esse desenvolvimento diz
respeito especificamente à admissão ao sacramento da Eucaristia de
pessoas católicas que estejam divorciadas e recasadas no civil sem
anulação. Em sua Constituição Apostólica Familiaris consortio (de 1981), que é a resposta do Papa João Paulo II ao Sínodo sobre a Família de 1980,
ele decretou que as pessoas católicas que fossem divorciadas e
recasadas sem anulação e estivessem em situação objetiva, mas talvez não
subjetiva de pecado, só poderiam ser admitidas a esses sacramentos sob a
condição rígida e tortuosa de que “assumem a obrigação de viver em
plena continência, isto é, de abster-se dos atos próprios dos cônjuges”
(n. 84). (AL usa a expressão “pecado objetivo”. Este
uso, entretanto, é teológica e eticamente incorreto. “Pecado” se aplica à
culpabilidade subjetiva do agente moral, não ao caráter certo ou errado
de um ato).
A nota de rodapé 351 de Francisco,
que estranhamente não está colocada no corpo do texto, oferece a
possibilidade de que casais sejam admitidos aos sacramentos em certas
circunstâncias. Em consonância com esse tema geral da misericórdia e
caridade, ele ressalta que a Eucaristia
“não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um
alimento para os fracos”. O Papa não chega a expressar uma permissão
geral da admissão à comunhão das pessoas divorciadas e recasadas sem
anulação, mas está claro que ele deixa a admissão aberta em casos com
discernimento. Não abre automaticamente a porta para a mudança, mas
certamente nos informa onde está a chave da porta, a saber, como já
explicamos, sob o capacho do discernimento pastoral orientado e da
decisão de uma consciência informada.
Em segundo lugar — mais uma vez —,
embora não haja uma mudança doutrinal implicada, a transposição da
doutrina sobre o matrimônio de um fundamento no direito para um
fundamento na virtude é uma mudança teórica significativa. O direito
deve ser obedecido, sendo, por isso, geralmente acompanhado, no ensino
do Magistério, pela expressão debitum obsequium, que significa “devido
respeito” ou “devida obediência” (cf., por exemplo, Código do Direito Canônico, cânones 218, 752, 753). Essa expressão não aparece em lugar algum em Amoris Laetitia, nem mesmo nos parágrafos 305-306 e na nota de rodapé 351, onde esperaríamos encontrá-la.
O direito, repetindo, exige aceitação da
lei e obediência a ela; a virtude exige aceitação de e compromisso com o
desafio de viver consciente e ativamente a vida cristã. Esse viver
ativamente é um desafio sério para seres humanos que tenham sofrido
dano, e talvez seja por isso que Francisco faz tal
esforço para apresentar o matrimônio cristão tão positivamente como uma
resposta ao Evangelho e julga que, “hoje, mais importante do que uma
pastoral dos falimentos é o esforço pastoral para consolidar os
matrimônios e assim evitar as rupturas” (AL 307).
Em terceiro lugar, não podemos sustentar
que o foco na consciência — que ocorre 20 vezes no documento — seja uma
perspectiva nova, pois se trata de uma doutrina católica antiga. A
realidade, contudo, é que ela é uma doutrina que tem se notabilizado
mais por sua ausência do que por sua presença em ensinamentos modernos
do Magistério sobre questões morais em geral e sobre a questão do
matrimônio em particular.
Falando do incentivo a casais unidos em
matrimônio para procriar, o papa afirma que “a opção da paternidade
responsável pressupõe a formação da consciência, que é ‘o centro mais
secreto e o santuário do ser humano, no qual se encontra a sós com Deus,
cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser’ (Gaudium et spes,
16). Quanto mais procurarem os esposos ouvir, na sua consciência, a
Deus e os seus mandamentos (cf. Rm 2, 15) e se fizerem acompanhar
espiritualmente, tanto mais a sua decisão será intimamente livre de um
arbítrio subjetivo e da acomodação às modas de comportamento no seu
ambiente” (AL 222). Essa abordagem tem prosseguimento, como vimos, na
seção que trata da admissão à comunhão das pessoas divorciadas e
recasadas sem anulação.
Conclusão
Comemoramos o fato de que nessa Exortação Apostólica o Papa Francisco
nos ofereceu uma resposta irênica aos debates muitas vezes causadores
de divisão ocorridos nos dois Sínodos. Ele se apresentou como um pastor
prudente, amoroso e misericordioso, elevou e sustentou o ensinamento
católico sobre o matrimônio e demarcou um caminho tradicional e
cuidadoso de discernimento para resolver situações irregulares.
Nem todo o mundo ficará contente com o documento, mas nós nos rejubilamos com Amoris Laetitia por ser um documento que colocará o ensinamento católico
sobre o matrimônio mais uma vez na linha de frente de qualquer
discussão sobre o matrimônio. Acreditamos que ele assinale o início de
uma Igreja mais aberta, compreensiva, convidativa e misericordiosa e
esperamos que, assim como está moldando um desenvolvimento orgânico da
abordagem pastoral de questões morais, vá além, no longo prazo, para
moldar também um desenvolvimento da doutrina da teologia moral católica
relacionada a questões controvertidas da ética matrimonial e sexual.
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jbpsverdade: Me preocupa e muito o documento Amoris Laetitia do Papa Francisco. Em nenhum momento eu vejo a palavra pecado e condenação, quando trata do "casamento de pessoas do mesmo sexo" e da comunhão para os "casados" de segunda união. Fala-se tanto na misericórdia de Deus que acabam esquecendo-se da Sua Justiça. As pessoas precisam entender que Deus não é conivente com o pecado, tanto o homossexualismo como o adultério para Deus são pecados gravíssimos. A Igreja deveria e deve exortar quanto a isso e não querer "tapar o sol com a peneira", pois com Deus não se brinca.
Um refrão que permeia todo o
documento é o de que Deus acolhe todas as pessoas na Igreja que é
comunhão... sim acolhe, mas ao acolher, a igreja tem por obrigação exortar no sentido de se fazerem entender que se continuarem assim, ou seja, vivendo no pecado abominável para Deus, o destino é a condenação eterna (isto para os homossexuais).
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