sexta-feira, 3 de setembro de 2010

CARTA ENCÍCLICA FIDES ET RATIO

CARTA ENCÍCLICA FIDES ET RATIO
DO SUMO PONTÍFICE JOÃO PAULO II AOS BISPOS DA IGREJA CATÓLICA SOBRE AS
RELAÇÕES ENTRE FÉ E RAZÃO

Venerados Irmãos no Episcopado,
saúde e Bênção Apostólica!

A fé e a razão (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas
quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi
Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e,
em última análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e
amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio (cf. Ex
33, 18; Sal 2726, 8-9; 6362, 2-3; Jo 14, 8; 1 Jo 3, 2).
INTRODUÇÃO
«CONHECE-TE A TI MESMO »
1. Tanto no Oriente como no Ocidente, é possível entrever um caminho
que, ao longo dos séculos, levou a humanidade a encontrar-se
progressivamente com a verdade e a confrontar-se com ela. É um caminho
que se realizou ? nem podia ser de outro modo ? no âmbito da
autoconsciência pessoal: quanto mais o homem conhece a realidade e o
mundo, tanto mais se conhece a si mesmo na sua unicidade, ao mesmo tempo
que nele se torna cada vez mais premente a questão do sentido das coisas
e da sua própria existência. O que chega a ser objecto do nosso
conhecimento, torna-se por isso mesmo parte da nossa vida. A
recomendação conhece-te a ti mesmo estava esculpida no dintel do templo
de Delfos, para testemunhar uma verdade basilar que deve ser assumida
como regra mínima de todo o homem que deseje distinguir-se, no meio da
criação inteira, pela sua qualificação de « homem », ou seja, enquanto
«conhecedor de si mesmo ».
Aliás, basta um simples olhar pela história antiga para ver com toda a
clareza como surgiram simultaneamente, em diversas partes da terra
animadas por culturas diferentes, as questões fundamentais que
caracterizam o percurso da existência humana: Quem sou eu? Donde venho e
para onde vou? Porque existe o mal? O que é que existirá depois desta
vida? Estas perguntas encontram-se nos escritos sagrados de Israel, mas
aparecem também nos Vedas e no Avestá; achamo-las tanto nos escritos de
Confúcio e Lao-Tze, como na pregação de Tirtankara e de Buda; e assomam
ainda quer nos poemas de Homero e nas tragédias de Eurípides e Sófocles,
quer nos tratados filosóficos de Platão e Aristóteles. São questões que
têm a sua fonte comum naquela exigência de sentido que, desde sempre,
urge no coração do homem: da resposta a tais perguntas depende
efectivamente a orientação que se imprime à existência.
2. A Igreja não é alheia, nem pode sê-lo, a este caminho de pesquisa.
Desde que recebeu, no Mistério Pascal, o dom da verdade última sobre a
vida do homem, ela fez-se peregrina pelas estradas do mundo, para
anunciar que Jesus Cristo é « o caminho, a verdade e a vida » (Jo 14,
6). De entre os vários serviços que ela deve oferecer à humanidade, há
um cuja responsabilidade lhe cabe de modo absolutamente peculiar: é a
diaconia da verdade. (1) Por um lado, esta missão torna a comunidade
crente participante do esforço comum que a humanidade realiza para
alcançar a verdade, (2) e, por outro, obriga-a a empenhar-se no anúncio
das certezas adquiridas, ciente todavia de que cada verdade alcançada é
apenas mais uma etapa rumo àquela verdade plena que se há--de manifestar
na última revelação de Deus: « Hoje vemos como por um espelho, de
maneira confusa, mas então veremos face a face. Hoje conheço de maneira
imperfeita, então conhecerei exactamente » (1 Cor 13, 12).
3. Variados são os recursos que o homem possui para progredir no
conhecimento da verdade, tornando assim cada vez mais humana a sua
existência. De entre eles sobressai a filosofia, cujo contributo
específico é colocar a questão do sentido da vida e esboçar a resposta:
constitui, pois, uma das tarefas mais nobres da humanidade. O termo
filosofia significa, segundo a etimologia grega, « amor à sabedoria ».
Efectivamente a filosofia nasceu e começou a desenvolver-se quando o
homem principiou a interrogar-se sobre o porquê das coisas e o seu fim.
Ela demonstra, de diferentes modos e formas, que o desejo da verdade
pertence à própria natureza do homem. Interrogar-se sobre o porquê das
coisas é uma propriedade natural da sua razão, embora as respostas, que
esta aos poucos vai dando, se integrem num horizonte que evidencia a
complementaridade das diferentes culturas onde o homem vive.
A grande incidência que a filosofia teve na formação e desenvolvimento
das culturas do Ocidente não deve fazer-nos esquecer a influência que a
mesma exerceu também nos modos de conceber a existência presentes no
Oriente. Na realidade, cada povo possui a sua própria sabedoria natural,
que tende, como autêntica riqueza das culturas, a exprimir-se e a
maturar em formas propriamente filosóficas. Prova da verdade de tudo
isto é a existência duma forma basilar de conhecimento filosófico, que
perdura até aos nossos dias e que se pode constatar nos próprios
postulados em que as várias legislações nacionais e internacionais se
inspiram para regular a vida social.
4. Deve-se assinalar, porém, que, por detrás dum único termo, se
escondem significados diferentes. Por isso, é necessária uma
explicitação preliminar. Impelido pelo desejo de descobrir a verdade
última da existência, o homem procura adquirir aqueles conhecimentos
universais que lhe permitam uma melhor compreensão de si mesmo e
progredir na sua realização. Os conhecimentos fundamentais nascem da
maravilha que nele suscita a contemplação da criação: o ser humano
enche-se de encanto ao descobrir-se incluído no mundo e relacionado com
outros seres semelhantes, com quem partilha o destino. Parte daqui o
caminho que o levará, depois, à descoberta de horizontes de
conhecimentos sempre novos. Sem tal assombro, o homem tornar-se-ia
repetitivo e, pouco a pouco, incapaz de uma existência verdadeiramente
pessoal.
A capacidade reflexiva própria do intelecto humano permite elaborar,
através da actividade filosófica, uma forma de pensamento rigoroso, e
assim construir, com coerência lógica entre as afirmações e coesão
orgânica dos conteúdos, um conhecimento sistemático. Graças a tal
processo, alcançaram-se, em contextos culturais diversos e em diferentes
épocas históricas, resultados que levaram à elaboração de verdadeiros
sistemas de pensamento. Historicamente isto gerou muitas vezes a
tentação de identificar uma única corrente com o pensamento filosófico
inteiro. Mas, nestes casos, é claro que entra em jogo uma certa «soberba
filosófica », que pretende arvorar em leitura universal a própria
perspectiva e visão imperfeita. Na realidade, cada sistema filosófico,
sempre no respeito da sua integridade e livre de qualquer
instrumentalização, deve reconhecer a prioridade do pensar filosófico de
que teve origem e ao qual deve coerentemente servir.
Neste sentido, é possível, não obstante a mudança dos tempos e os
progressos do saber, reconhecer um núcleo de conhecimentos filosóficos,
cuja presença é constante na história do pensamento. Pense-se, só como
exemplo, nos princípios de não-contradição, finalidade, causalidade, e
ainda na concepção da pessoa como sujeito livre e inteligente, e na sua
capacidade de conhecer Deus, a verdade, o bem; pense-se, além disso, em
algumas normas morais fundamentais que geralmente são aceites por todos.
Estes e outros temas indicam que, para além das correntes de pensamento,
existe um conjunto de conhecimentos, nos quais é possível ver uma
espécie de património espiritual da humanidade. É como se nos
encontrássemos perante uma filosofia implícita, em virtude da qual cada
um sente que possui estes princípios, embora de forma genérica e não
reflectida. Estes conhecimentos, precisamente porque partilhados em
certa medida por todos, deveriam constituir uma espécie de ponto de
referência para as diversas escolas filosóficas. Quando a razão consegue
intuir e formular os princípios primeiros e universais do ser, e deles
deduzir correcta e coerentemente conclusões de ordem lógica e
deontológica, então pode-se considerar uma razão recta, ou, como era
chamada pelos antigos, orthòs logos, recta ratio.
5. A Igreja, por sua vez, não pode deixar de apreciar o esforço da razão
na consecução de objectivos que tornem cada vez mais digna a existência
pessoal. Na verdade, ela vê, na filosofia, o caminho para conhecer
verdades fundamentais relativas à existência do homem. Ao mesmo tempo,
considera a filosofia uma ajuda indispensável para aprofundar a
compreensão da fé e comunicar a verdade do Evangelho a quantos não a
conhecem ainda.
Na sequência de iniciativas análogas dos meus Predecessores, desejo
também eu debruçar-me sobre esta actividade peculiar da razão. Faço-o
movido pela constatação, sobretudo em nossos dias, de que a busca da
verdade última aparece muitas vezes ofuscada. A filosofia moderna
possui, sem dúvida, o grande mérito de ter concentrado a sua atenção
sobre o homem. Partindo daí, uma razão cheia de interrogativos levou por
diante o seu desejo de conhecer sempre mais ampla e profundamente. Desta
forma, foram construídos sistemas de pensamento complexos, que deram os
seus frutos nos diversos âmbitos do conhecimento, favorecendo o
progresso da cultura e da história. A antropologia, a lógica, as
ciências da natureza, a história, a linguística, de algum modo todo o
universo do saber foi abarcado. Todavia, os resultados positivos
alcançados não devem levar a transcurar o facto de que essa mesma razão,
porque ocupada a investigar de maneira unilateral o homem como objecto,
parece ter-se esquecido de que este é sempre chamado a voltar-se também
para uma realidade que o transcende. Sem referência a esta, cada um fica
ao sabor do livre arbítrio, e a sua condição de pessoa acaba por ser
avaliada com critérios pragmáticos baseados essencialmente sobre o dado
experimental, na errada convicção de que tudo deve ser dominado pela
técnica. Foi assim que a razão, sob o peso de tanto saber, em vez de
exprimir melhor a tensão para a verdade, curvou-se sobre si mesma,
tornando-se incapaz, com o passar do tempo, de levantar o olhar para o
alto e de ousar atingir a verdade do ser. A filosofia moderna,
esquecendo-se de orientar a sua pesquisa para o ser, concentrou a
própria investigação sobre o conhecimento humano. Em vez de se apoiar
sobre a capacidade que o homem tem de conhecer a verdade, preferiu
sublinhar as suas limitações e condicionalismos.
Daí provieram várias formas de agnosticismo e relativismo, que levaram a
investigação filosófica a perder-se nas areias movediças dum cepticismo
geral. E, mais recentemente, ganharam relevo diversas doutrinas que
tendem a desvalorizar até mesmo aquelas verdades que o homem estava
certo de ter alcançado. A legítima pluralidade de posições cedeu o lugar
a um pluralismo indefinido, fundado no pressuposto de que todas as
posições são equivalentes: trata-se de um dos sintomas mais difusos, no
contexto actual, de desconfiança na verdade. E esta ressalva vale também
para certas concepções de vida originárias do Oriente: é que negam à
verdade o seu carácter exclusivo, ao partirem do pressuposto de que ela
se manifesta de modo igual em doutrinas diversas ou mesmo contraditórias
entre si. Neste horizonte, tudo fica reduzido a mera opinião. Dá a
impressão de um movimento ondulatório: enquanto, por um lado, a razão
filosófica conseguiu avançar pela estrada que a torna cada vez mais
atenta à existência humana e às suas formas de expressão, por outro
tende a desenvolver considerações existenciais, hermenêuticas ou
linguísticas, que prescindem da questão radical relativa à verdade da
vida pessoal, do ser e de Deus. Como consequência, despontaram, não só
em alguns filósofos mas no homem contemporâneo em geral, atitudes de
desconfiança generalizada quanto aos grandes recursos cognoscitivos do
ser humano. Com falsa modéstia, contentam-se de verdades parciais e
provisórias, deixando de tentar pôr as perguntas radicais sobre o
sentido e o fundamento último da vida humana, pessoal e social. Em suma,
esmoreceu a esperança de se poder receber da filosofia respostas
definitivas a tais questões.
6. Credenciada pelo facto de ser depositária da revelação de Jesus
Cristo, a Igreja deseja reafirmar a necessidade da reflexão sobre a
verdade. Foi por este motivo que decidi dirigir-me a vós, venerados
Irmãos no Episcopado, com quem partilho a missão de anunciar «
abertamente a verdade » (2 Cor 4, 2), e dirigir-me também aos teólogos e
filósofos a quem compete o dever de investigar os diversos aspectos da
verdade, e ainda a quantos andam à procura duma resposta, para comunicar
algumas reflexões sobre o caminho que conduz à verdadeira sabedoria, a
fim de que todo aquele que tiver no coração o amor por ela possa tomar a
estrada certa para a alcançar, e nela encontrar repouso para a sua
fadiga e também satisfação espiritual.
Tomo esta iniciativa impelido, antes de mais, pela certeza de que os
Bispos, como assinala o Concílio Vaticano II, são « testemunhas da
verdade divina e católica » (3). Por isso, testemunhar a verdade é um
encargo que nos foi confiado a nós, os Bispos; não podemos renunciar a
ele, sem faltar ao ministério que recebemos. Reafirmando a verdade da
fé, podemos restituir ao homem de hoje uma genuína confiança nas suas
capacidades cognoscitivas e oferecer à filosofia um estímulo para poder
recuperar e promover a sua plena dignidade.
Há um segundo motivo que me induz a escrever estas reflexões Na carta
encíclica Veritatis splendor, chamei a atenção para « algumas verdades
fundamentais da doutrina católica que, no contexto actual, correm o
risco de serem deformadas ou negadas ». (4) Com este novo documento,
desejo continuar aquela reflexão, concentrando a atenção precisamente
sobre o tema da verdade e sobre o seu fundamento em relação com a fé. De
facto, não se pode negar que este período, de mudanças rápidas e
complexas, deixa sobretudo os jovens, a quem pertence e de quem depende
o futuro, na sensação de estarem privados de pontos de referência
autênticos. A necessidade de um alicerce sobre o qual construir a
existência pessoal e social faz-se sentir de maneira premente,
principalmente quando se é obrigado a constatar o carácter fragmentário
de propostas que elevam o efémero ao nível de valor, iludindo assim a
possibilidade de se alcançar o verdadeiro sentido da existência. Deste
modo, muitos arrastam a sua vida quase até à borda do precipício, sem
saber o que os espera. Isto depende também do facto de, às vezes, quem
era chamado por vocação a exprimir em formas culturais o fruto da sua
reflexão, ter desviado o olhar da verdade, preferindo o sucesso imediato
ao esforço duma paciente investigação sobre aquilo que merece ser
vivido. A filosofia, que tem a grande responsabilidade de formar o
pensamento e a cultura através do apelo perene à busca da verdade, deve
recuperar vigorosamente a sua vocação originária. É por isso que senti a
necessidade e o dever de intervir sobre este tema, para que, no limiar
do terceiro milénio da era cristã, a humanidade tome consciência mais
clara dos grandes recursos que lhe foram concedidos, e se empenhe com
renovada coragem no cumprimento do plano de salvação, no qual está
inserida a sua história.
CAPÍTULO I
A REVELAÇÃO
DA SABEDORIA DE DEUS
1. Jesus, revelador do Pai
7. Na base de toda a reflexão feita pela Igreja, está a consciência de
ser depositária duma mensagem, que tem a sua origem no próprio Deus (cf.
2 Cor 4, 1-2). O conhecimento que ela propõe ao homem, não provém de uma
reflexão sua, nem sequer da mais alta, mas de ter acolhido na fé a
palavra de Deus (cf. 1 Tes 2, 13). Na origem do nosso ser crentes existe
um encontro, único no seu género, que assinala a abertura de um mistério
escondido durante tantos séculos (cf. 1 Cor 2, 7; Rom 16, 25-26), mas
agora revelado: « Aprouve a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar-Se
a Si mesmo e dar a conhecer o mistério da sua vontade (cf. Ef 1, 9),
segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado, têm
acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da natureza
divina ». (5) Trata-se de uma iniciativa completamente gratuita, que
parte de Deus e vem ao encontro da humanidade para a salvar. Enquanto
fonte de amor, Deus deseja dar-Se a conhecer, e o conhecimento que o
homem adquire d`Ele leva à plenitude qualquer outro conhecimento
verdadeiro que a sua mente seja capaz de alcançar sobre o sentido da
própria existência.
8. Retomando quase literalmente a doutrina presente na constituição Dei
Filius do Concílio Vaticano I e tendo em conta os princípios propostos
pelo Concílio de Trento, a constituição Dei Verbum do Vaticano II
continuou aquele caminho plurissecular de compreensão da fé, reflectindo
sobre a Revelação à luz da doutrina bíblica e de toda a tradição
patrística. No primeiro Concílio do Vaticano, os Padres tinham
sublinhado o carácter sobrenatural da revelação de Deus. A crítica
racionalista que então se fazia sentir contra a fé, baseada em teses
erradas mas muito difusas, insistia sobre a negação de qualquer
conhecimento que não fosse fruto das capacidades naturais da razão. Isto
obrigara o Concílio a reafirmar vigorosamente que, além do conhecimento
da razão humana, por sua natureza, capaz de chegar ao Criador, existe um
conhecimento que é peculiar da fé. Este conhecimento exprime uma verdade
que se funda precisamente no facto de Deus que Se revela, e é uma
verdade certíssima porque Deus não Se engana nem quer enganar. (6)
9. Por isso, o Concílio Vaticano I ensina que a verdade alcançada pela
via da reflexão filosófica e a verdade da Revelação não se confundem,
nem uma torna a outra supérflua: « Existem duas ordens de conhecimento,
diversas não apenas pelo seu princípio, mas também pelo objecto. Pelo
seu princípio, porque, se num conhecemos pela razão natural, no outro
fazêmo-lo por meio da fé divina; pelo objecto, porque, além das verdades
que a razão natural pode compreender, é-nos proposto ver os mistérios
escondidos em Deus, que só podem ser conhecidos se nos forem revelados
do Alto ». (7) A fé, que se fundamenta no testemunho de Deus e conta com
a ajuda sobrenatural da graça, pertence efectivamente a uma ordem de
conhecimento diversa da do conhecimento filosófico. De facto, este
assenta sobre a percepção dos sentidos, sobre a experiência, e move-se
apenas com a luz do intelecto. A filosofia e as ciências situam-se na
ordem da razão natural, enquanto a fé, iluminada e guiada pelo Espírito,
reconhece na mensagem da salvação a « plenitude de graça e de verdade »
(cf. Jo 1, 14) que Deus quis revelar na história, de maneira definitiva,
por meio do seu Filho Jesus Cristo (cf. 1 Jo 5, 9; Jo 5, 31-32).
10. No Concílio Vaticano II, os Padres, fixando a atenção sobre Jesus
revelador, ilustraram o carácter salvífico da revelação de Deus na
história e exprimiram a sua natureza do seguinte modo: « Em virtude
desta revelação, Deus invisível (cf. Col 1, 15; 1 Tim 1, 17), na riqueza
do seu amor, fala aos homens como amigos (cf. Ex 33, 11; Jo 15, 14-15) e
convive com eles (cf. Bar 3, 38), para os convidar e admitir à comunhão
com Ele. Esta economia da Revelação realiza-se por meio de acções e
palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras,
realizadas por Deus na história da salvação, manifestam e confirmam a
doutrina e as realidades significadas pelas palavras; e as palavras, por
sua vez, declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido. Porém,
a verdade profunda tanto a respeito de Deus como a respeito da salvação
dos homens manifesta-se-nos, por esta Revelação, em Cristo, que é
simultaneamente o mediador e a plenitude de toda a revelação ». (8)
11. Assim, a revelação de Deus entrou no tempo e na história. Mais, a
encarnação de Jesus Cristo realiza-se na « plenitude dos tempos » (Gal
4, 4). À distância de dois mil anos deste acontecimento, sinto o dever
de reafirmar intensamente que, « no cristianismo, o tempo tem uma
importância fundamental ». (9) Com efeito, é nele que tem lugar toda a
obra da criação e da salvação, e sobretudo merece destaque o facto de
que, com a encarnação do Filho de Deus, vivemos e antecipamos desde já
aquilo que se seguirá ao fim dos tempos (cf. Heb 1, 2).
A verdade que Deus confiou ao homem a respeito de Si mesmo e da sua vida
insere-se, portanto, no tempo e na história. Sem dúvida, aquela foi
pronunciada uma vez por todas no mistério de Jesus de Nazaré. Afirma-o,
com palavras muito expressivas, a constituição Dei Verbum: « Depois de
ter falado muitas vezes e de muitos modos pelos profetas, falou-nos Deus
nestes nossos dias, que são os últimos, através de seu Filho (Heb 1,
1-2). Com efeito, enviou o seu Filho, isto é, o Verbo eterno, que
ilumina todos os homens, para habitar entre os homens e manifestar-lhes
a vida íntima de Deus (cf. Jo 1, 1-18). Jesus Cristo, Verbo feito carne,
enviado como homem para os homens, ¨fala, portanto, as palavras de Deus¨
(Jo 3, 34) e consuma a obra de salvação que o Pai Lhe mandou realizar
(cf. Jo 5, 36; 17, 4). Por isso, Ele ? vê-l`O a Ele é ver o Pai (cf. Jo
14, 9) ?, com toda a sua presença e manifestação da sua pessoa, com
palavras e obras, sinais e milagres, e sobretudo com a sua morte e
gloriosa ressurreição, e enfim, com o envio do Espírito de verdade,
completa totalmente e confirma com o testemunho divino a Revelação ».
(10)
Assim, a história constitui um caminho que o Povo de Deus há-de
percorrer inteiramente, de tal modo que a verdade revelada possa
exprimir em plenitude os seus conteúdos, graças à acção incessante do
Espírito Santo (cf. Jo 16, 13). Ensina-o também a constituição Dei
Verbum, quando afirma que « a Igreja, no decurso dos séculos, tende
continuamente para a plenitude da verdade divina, até que nela se
realizem as palavras de Deus ». (11)
12. A história torna-se, assim, o lugar onde podemos constatar a acção
de Deus em favor da humanidade. Ele vem ter connosco, servindo-Se
daquilo que nos é mais familiar e mais fácil de verificar, ou seja, o
nosso contexto quotidiano, fora do qual não conseguiríamos entender-nos.
A encarnação do Filho de Deus permite ver realizada uma síntese
definitiva que a mente humana, por si mesma, nem sequer poderia
imaginar: o Eterno entra no tempo, o Tudo esconde-se no fragmento, Deus
assume o rosto do homem. Deste modo, a verdade expressa na revelação de
Cristo deixou de estar circunscrita a um restrito âmbito territorial e
cultural, abrindo-se a todo o homem e mulher que a queira acolher como
palavra definitivamente válida para dar sentido à existência. Agora
todos têm acesso ao Pai, em Cristo; de facto, com a sua morte e
ressurreição, Ele concedeu-nos a vida divina que o primeiro Adão tinha
rejeitado (cf. Rom 5, 12-15). Com esta Revelação, é oferecida ao homem a
verdade última a respeito da própria vida e do destino da história: « Na
realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se
esclarece verdadeiramente », afirma a constituição Gaudium et spes. (12)
Fora desta perspectiva, o mistério da existência pessoal permanece um
enigma insolúvel. Onde poderia o homem procurar resposta para questões
tão dramáticas como a dor, o sofrimento do inocente e a morte, a não ser
na luz que dimana do mistério da paixão, morte e ressurreição de Cristo?
2. A razão perante o mistério
13. Entretanto, não se pode esquecer que a Revelação permanece envolvida
no mistério. Jesus, com toda a sua vida, revela seguramente o rosto do
Pai, porque Ele veio para manifestar os segredos de Deus; (13) e
contudo, o conhecimento que possuímos daquele rosto, está marcado sempre
pelo carácter parcial e limitado da nossa compreensão. Somente a fé
permite entrar dentro do mistério, proporcionando uma sua compreensão
coerente.
O Concílio ensina que, « a Deus que revela, é devida a obediência da fé
». (14) Com esta breve mas densa afirmação, é indicada uma verdade
fundamental do cristianismo. Diz-se, em primeiro lugar, que a fé é uma
resposta de obediência a Deus. Isto implica que Ele seja reconhecido na
sua divindade, transcendência e liberdade suprema. Deus que Se dá a
conhecer na autoridade da sua transcendência absoluta, traz consigo
também a credibilidade dos conteúdos que revela. Pela fé, o homem presta
assentimento a esse testemunho divino. Isto significa que reconhece
plena e integralmente a verdade de tudo o que foi revelado, porque é o
próprio Deus que o garante. Esta verdade, oferecida ao homem sem que ele
a possa exigir, insere-se no horizonte da comunicação interpessoal e
impele a razão a abrir-se a esta e a acolher o seu sentido profundo. É
por isso que o acto pelo qual nos entregamos a Deus, sempre foi
considerado pela Igreja como um momento de opção fundamental, que
envolve a pessoa inteira. Inteligência e vontade põem em acção o melhor
da sua natureza espiritual, para consentir que o sujeito realize um acto
no pleno exercício da sua liberdade pessoal. (15) Na fé, portanto, não
basta a liberdade estar presente, exige-se que entre em acção. Mais, é a
fé que permite a cada um exprimir, do melhor modo, a sua própria
liberdade. Por outras palavras, a liberdade não se realiza nas opções
contra Deus. Na verdade, como poderia ser considerado um uso autêntico
da liberdade, a recusa de se abrir àquilo que permite a realização de si
mesmo? No acreditar é que a pessoa realiza o acto mais significativo da
sua existência; de facto, nele a liberdade alcança a certeza da verdade
e decide viver nela.
Em auxílio da razão, que procura a compreensão do mistério, vêm também
os sinais presentes na Revelação. Estes servem para conduzir mais longe
a busca da verdade e permitir que a mente possa autonomamente investigar
inclusive dentro do mistério. De qualquer modo, se, por um lado, esses
sinais dão maior força à razão, porque lhe permitem pesquisar dentro do
mistério com os seus próprios meios, de que ela justamente se sente
ciosa, por outro lado, impelem-na a transcender a sua realidade de
sinais para apreender o significado ulterior de que eles são portadores.
Portanto, já há neles uma verdade escondida, para a qual encaminham a
mente e da qual esta não pode prescindir sem destruir o próprio sinal
que lhe foi proposto.
Chega-se, assim, ao horizonte sacramental da Revelação e de forma
particular ao sinal eucarístico, onde a união indivisível entre a
realidade e o respectivo significado permite identificar a profundidade
do mistério. Na Eucaristia, Cristo está verdadeiramente presente e vivo,
actua pelo seu Espírito, mas, como justamente diz S. Tomás, « nada vês
nem compreendes, mas t`o afirma a fé mais viva, para além das leis da
Terra. Sob espécies diferentes, que não passam de sinais, é que está o
dom de Deus ». (16) Temos um eco disto mesmo nas seguintes palavras do
filósofo Pascal: « Como Jesus Cristo passou despercebido no meio dos
homens, assim a sua verdade permanece, entre as opiniões comuns, sem
diferença exterior. O mesmo se dá com a Eucaristia relativamente ao pão
comum ».(17)
Em resumo, o conhecimento da fé não anula o mistério; torna-o apenas
mais evidente e apresenta-o como um facto essencial para a vida do
homem: Cristo Senhor, « na própria revelação do mistério do Pai e do seu
amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime »,
(18) que é participar no mistério da vida trinitária de Deus. (19)
14. A doutrina do primeiro e segundo Concílio do Vaticano abre um
horizonte verdadeiramente novo também ao saber filosófico. A Revelação
coloca dentro da história um ponto de referência de que o homem não pode
prescindir, se quiser chegar a compreender o mistério da sua existência;
mas, por outro lado, este conhecimento apela constantemente para o
mistério de Deus que a mente não consegue abarcar, mas apenas receber e
acolher na fé. Entre estes dois momentos, a razão possui o seu espaço
peculiar que lhe permite investigar e compreender, sem ser limitada por
nada mais que a sua finitude ante o mistério infinito de Deus.
A Revelação introduz, portanto, na nossa história uma verdade universal
e última que leva a mente do homem a nunca mais se deter; antes,
impele-a a ampliar continuamente os espaços do próprio conhecimento até
sentir que realizou tudo o que estava ao seu alcance, sem nada descurar.
Ajuda-nos, nesta reflexão, uma das inteligências mais fecundas e
significativas da história da humanidade, à qual obrigatoriamente fazem
referência a filosofia e a teologia: Santo Anselmo. Na sua obra,
Proslogion, o Arcebispo de Cantuária exprime-se assim: « Detendo-me com
frequência e atenção a pensar neste problema, sucedia umas vezes que me
parecia estar para agarrar o que buscava, outras vezes, pelo contrário,
furtava-se completamente ao meu pensamento; até que finalmente,
desesperado de o poder achar, decidi deixar de procurar algo que me era
impossível encontrar. Mas, quando quis afastar de mim tal pensamento
para que a sua ocupação da minha mente não me alheasse de outros
problemas de que podia tirar algum proveito, foi então que começou a
apresentar-se cada vez mais teimoso. (...) Mas, pobre de mim, um dos
pobres filhos de Eva, longe de Deus, o que é que comecei a fazer e o que
é que consegui? O que é que visava e a que ponto cheguei? A que é que
aspirava e por que é que suspiro? (...) Ó Senhor, Vós não sois apenas
algo acerca do qual não se pode pensar nada de maior (non solum es quo
maius cogitari nequit), mas sois maior de tudo o que se possa pensar
(quiddam maius quam cogitari possit) (...). Se não fôsseis o que sois,
poder-se-ia pensar algo maior do que Vós, mas isso é impossível ». (20)
15. A verdade da revelação cristã, que se encontra em Jesus de Nazaré,
permite a quemquer que seja perceber o « mistério » da própria vida.
Enquanto verdade suprema, ao mesmo tempo que respeita a autonomia da
criatura e a sua liberdade, obriga-a a abrir-se à transcendência. Aqui,
a relação entre liberdade e verdade atinge o seu máximo grau, podendo-se
compreender plenamente esta palavra do Senhor: « Conhecereis a verdade e
a verdade libertar-vos-á » (Jo 8, 32).
A revelação cristã é a verdadeira estrela de orientação para o homem,
que avança por entre os condicionalismos da mentalidade imanentista e os
reducionismos duma lógica tecnocrática; é a última possibilidade
oferecida por Deus, para reencontrar em plenitude aquele projecto
primordial de amor que teve início com a criação. Ao homem ansioso de
conhecer a verdade ? se ainda é capaz de ver para além de si mesmo e
levantar os olhos acima dos seus próprios projectos ? é-lhe concedida a
possibilidade de recuperar a genuína relação com a sua vida, seguindo a
estrada da verdade. Podem-se aplicar a esta situação as seguintes
palavras do Deuteronómio: « A lei que hoje te imponho não está acima das
tuas forças nem fora do teu alcance. Não está no céu, para que digas:
¨Quem subirá por nós ao céu e no-la irá buscar?¨ Não está tão pouco do
outro lado do mar, para que digas: ¨Quem atravessará o mar para no-la
buscar e no-la fazer ouvir para que a observemos?¨ Não, ela está muito
perto de ti: está na tua boca e no teu coração; e tu podes cumpri-la »
(30, 11-14). Temos um eco deste texto no famoso pensamento do filósofo e
teólogo Santo Agostinho: « Noli foras ire, in te ipsum redi. In
interiore homine habitat veritas ». (21)
À luz destas considerações, impõe-se uma primeira conclusão: a verdade
que a Revelação nos dá a conhecer não é o fruto maduro ou o ponto
culminante dum pensamento elaborado pela razão. Pelo contrário, aquela
apresenta-se com a característica da gratuidade, obriga a pensá-la, e
pede para ser acolhida, como expressão de amor. Esta verdade revelada é
a presença antecipada na nossa história daquela visão última e
definitiva de Deus, que está reservada para quantos acreditam n`Ele ou O
procuram de coração sincero. Assim, o fim último da existência pessoal é
objecto de estudo quer da filosofia, quer da teologia. Embora com meios
e conteúdos diversos, ambas apontam para aquele « caminho da vida » (Sal
1615, 11) que, segundo nos diz a fé, tem o seu termo último de chegada
na alegria plena e duradoura da contemplação de Deus Uno e Trino.
CAPÍTULO II
CREDO UT INTELLEGAM
1. « A sabedoria sabe e compreende todas as coisas» (Sab9, 11)
16. Quão profunda seja a ligação entre o conhecimento da fé e o da
razão, já a Sagrada Escritura no-lo indica com elementos de uma clareza
surpreendente. Comprovam-no sobretudo os Livros Sapienciais. O que
impressiona na leitura, feita sem preconceitos, dessas páginas da
Sagrada Escritura é o facto de estes textos conterem não apenas a fé de
Israel, mas também o tesouro de civilizações e culturas já
desaparecidas. Como se de um desígnio particular se tratasse, o Egipto e
a Mesopotâmia fazem ouvir novamente a sua voz, e alguns traços comuns
das culturas do Antigo Oriente ressurgem nestas páginas ricas de
intuições singularmente profundas.
Não é por acaso que o autor sagrado, ao querer descrever o homem sábio,
o apresenta como aquele que ama e busca a verdade: « Feliz o homem que é
constante na sabedoria, e que discorre com a sua inteligência; que
repassa no seu coração os caminhos da sabedoria, e que penetra no
conhecimento dos seus segredos; vai atrás dela como quem lhe segue o
rasto, e permanece nos seus caminhos; olha pelas suas janelas, e escuta
às suas portas; repousa junto da sua morada, e fixa um pilar nas suas
paredes; levanta a sua tenda junto dela, e estabelece ali agradável
morada; coloca os seus filhos debaixo da sua protecção, e ele mesmo
morará debaixo dos seus ramos; à sua sombra estará defendido do calor, e
repousará na sua glória » (Sir 14, 20-27).
Para o autor inspirado, como se vê, o desejo de conhecer é uma
característica comum a todos os homens. Graças à inteligência, é dada a
todos, crentes e descrentes, a possibilidade de « saciarem-se nas águas
profundas » do conhecimento (cf. Prov 20, 5). Seguramente, no Antigo
Israel, o conhecimento do mundo e dos seus fenómenos não se realizava
pela via da abstracção, como já o fazia o filósofo jónico ou o sábio
egípcio. E menos ainda podia o bom israelita conceber o conhecimento nos
parâmetros próprios da época moderna, mais propensa à subdivisão do
saber. Apesar disso, o mundo bíblico fez confluir, para o grande mar da
teoria do conhecimento, o seu contributo original.
Qual? O carácter peculiar do texto bíblico reside na convicção de que
existe uma unidade profunda e indivisível entre o conhecimento da razão
e o da fé. O mundo e o que nele acontece, assim como a história e as
diversas vicissitudes da nação são realidades observadas, analisadas e
julgadas com os meios próprios da razão, mas sem deixar a fé alheia a
este processo. Esta não intervém para humilhar a autonomia da razão, nem
para reduzir o seu espaço de acção, mas apenas para fazer compreender ao
homem que, em tais acontecimentos, Se torna visível e actua o Deus de
Israel. Assim, não é possível conhecer profundamente o mundo e os factos
da história, sem ao mesmo tempo professar a fé em Deus que neles actua.
A fé aperfeiçoa o olhar interior, abrindo a mente para descobrir, no
curso dos acontecimentos, a presença operante da Providência. A tal
propósito, é significativa uma expressão do livro dos Provérbios: « A
mente do homem dispõe o seu caminho, mas é o Senhor quem dirige os seus
passos » (16, 9). É como se dissesse que o homem, pela luz da razão,
pode reconhecer a sua estrada, mas percorrê-la de maneira decidida, sem
obstáculos e até ao fim, ele só o consegue se, de ânimo recto, integrar
a sua pesquisa no horizonte da fé. Por isso, a razão e a fé não podem
ser separadas, sem fazer com que o homem perca a possibilidade de
conhecer de modo adequado a si mesmo, o mundo e Deus.
17. Não há motivo para existir concorrência entre a razão e a fé: uma
implica a outra, e cada qual tem o seu espaço próprio de realização.
Aponta nesta direcção o livro dos Provérbios, quando exclama: « A glória
de Deus é encobrir as coisas, e a glória dos reis é investigá-las » (25,
2). Deus e o homem estão colocados, em seu respectivo mundo, numa
relação única. Em Deus reside a origem de tudo, n`Ele se encerra a
plenitude do mistério, e isto constitui a sua glória; ao homem, pelo
contrário, compete o dever de investigar a verdade com a razão, e nisto
está a sua nobreza. Um novo ladrilho é colocado neste mosaico pelo
Salmista, quando diz: « Quão insondáveis para mim, ó Deus, vossos
pensamentos! Quão imenso o seu número! Quisera contá-los, são mais que
as areias; se pudesse chegar ao fim, estaria ainda convosco » (139/ 138,
17-18). O desejo de conhecer é tão grande e comporta tal dinamismo que o
coração do homem, ao tocar o limite intransponível, suspira pela riqueza
infinita que se encontra para além deste, por intuir que nela está
contida a resposta cabal para toda a questão ainda sem resposta.
18. Podemos, pois, dizer que Israel, com a sua reflexão, soube abrir à
razão o caminho para o mistério. Na revelação de Deus, pôde sondar em
profundidade aquilo que a razão estava procurando alcançar sem o
conseguir. A partir desta forma mais profunda de conhecimento, o Povo
Eleito compreendeu que a razão deve respeitar algumas regras
fundamentais, para manifestar do melhor modo possível a própria
natureza. A primeira regra é ter em conta que o conhecimento do homem é
um caminho que não permite descanso; a segunda nasce da consciência de
que não se pode percorrer tal caminho com o orgulho de quem pensa que
tudo seja fruto de conquista pessoal; a terceira regra funda-se no «
temor de Deus », de quem a razão deve reconhecer tanto a transcendência
soberana como o amor solícito no governo do mundo.
Quando o homem se afasta destas regras, corre o risco de falimento e
acaba por encontrar-se na condição do « insensato ». Segundo a Bíblia,
nesta insensatez encerra-se uma ameaça à vida. É que o insensato
ilude-se pensando que conhece muitas coisas, mas, de facto, não é capaz
de fixar o olhar nas realidades essenciais. E isto impede-lhe de pôr
ordem na sua mente (cf. Prov 1, 7) e de assumir uma atitude correcta
para consigo mesmo e o ambiente circundante. Quando, depois, chega a
afirmar que « Deus não existe » (cf. Sal 1413, 1), isso revela, com
absoluta clareza, quanto seja deficiente o seu conhecimento e quão
distante esteja ele da verdade plena a respeito das coisas, da sua
origem e do seu destino.
19. Encontramos, no livro da Sabedoria, alguns textos importantes, que
iluminam ainda melhor este assunto. Lá, o autor sagrado fala de Deus que
Se dá a conhecer também através da natureza. Para os antigos, o estudo
das ciências naturais coincidia, em grande parte, com o saber
filosófico. Depois de ter afirmado que o homem, com a sua inteligência,
é capaz de « conhecer a constituição do universo e a força dos elementos
(...), o ciclo dos anos e a posição dos astros, a natureza dos animais
mansos e os instintos dos animais ferozes » (Sab 7, 17.19-20), por
outras palavras, que o homem é capaz de filosofar, o texto sagrado dá um
passo em frente muito significativo. Retomando o pensamento da filosofia
grega, à qual parece referir-se neste contexto, o autor afirma que,
raciocinando precisamente sobre a natureza, pode-se chegar ao Criador: «
Pela grandeza e beleza das criaturas, pode-se, por analogia, chegar ao
conhecimento do seu Autor » (Sab 13, 5). Reconhece-se, assim, um
primeiro nível da revelação divina, constituído pelo maravilhoso « livro
da natureza »; lendo-o com os meios próprios da razão humana, pode-se
chegar ao conhecimento do Criador. Se o homem, com a sua inteligência,
não chega a reconhecer Deus como criador de tudo, isso fica-se a dever
não tanto à falta de um meio adequado, como sobretudo ao obstáculo
interposto pela sua vontade livre e pelo seu pecado.
20. Nesta perspectiva, a razão é valorizada, mas não superexaltada. O
que ela alcança pode ser verdade, mas só adquire pleno significado se o
seu conteúdo for situado num horizonte mais amplo, o da fé: « O Senhor é
quem dirige os passos do homem; como poderá o homem compreender o seu
próprio destino? » (Prov 20, 24). A fé, segundo o Antigo Testamento,
liberta a razão, na medida em que lhe permite alcançar coerentemente o
seu objecto de conhecimento e situá-lo naquela ordem suprema onde tudo
adquire sentido. Em resumo, pela razão o homem alcança a verdade,
porque, iluminado pela fé, descobre o sentido profundo de tudo e,
particularmente, da própria existência. Justamente, pois, o autor
sagrado coloca o início do verdadeiro conhecimento no temor de Deus: « O
temor do Senhor é o princípio da sabedoria » (Prov 1, 7; cf. Sir 1, 14).
2. « Adquire a sabedoria, adquire a inteligência » (Prov 4, 5)
21. Segundo o Antigo Testamento, o conhecimento não se baseia apenas
numa atenta observação do homem, do mundo e da história, mas supõe como
indispensável também uma relação com a fé e os conteúdos da Revelação.
Aqui se concentram os desafios que o Povo Eleito teve de enfrentar e a
que deu resposta. Ao reflectir sobre esta sua condição, o homem bíblico
descobriu que não se podia compreender senão como « ser em relação »:
relação consigo mesmo, com o povo, com o mundo e com Deus. Esta abertura
ao mistério, que provinha da Revelação, acabou por ser, para ele, a
fonte dum verdadeiro conhecimento, que permitiu à sua razão aventurar-se
em espaços infinitos, recebendo inesperadas possibilidades de
compreensão.
Segundo o autor sagrado, o esforço da investigação não estava isento da
fadiga causada pelo embate nas limitações da razão. Sente-se isso mesmo,
por exemplo, nas palavras com que o livro dos Provérbios denuncia o
cansaço provado ao tentar compreender os misteriosos desígnios de Deus
(cf. 30, 1-6). Todavia, apesar da fadiga, o crente não desiste. E a
força para continuar o seu caminho rumo à verdade provém da certeza de
que Deus o criou como um « explorador » (cf. Coel 1, 13), cuja missão é
não deixar nada sem tentar, não obstante a contínua chantagem da dúvida.
Apoiando-se em Deus, o crente permanece, em todo o lado e sempre,
inclinado para o que é belo, bom e verdadeiro.
22. S. Paulo, no primeiro capítulo da carta aos Romanos, ajuda-nos a
avaliar melhor quanto seja incisiva a reflexão dos Livros Sapienciais.
Desenvolvendo com linguagem popular uma argumentação filosófica, o
Apóstolo exprime uma verdade profunda: através da criação, os « olhos da
mente » podem chegar ao conhecimento de Deus. Efectivamente, através das
criaturas, Ele faz intuir à razão o seu « poder » e a sua « divindade »
(cf. Rom 1, 20). Deste modo, é atribuída à razão humana uma capacidade
tal que parece quase superar os seus próprios limites naturais: não só
ultrapassa o âmbito do conhecimento sensorial, visto que lhe é possível
reflectir criticamente sobre o mesmo, mas, raciocinando a partir dos
dados dos sentidos, pode chegar também à causa que está na origem de
toda a realidade sensível. Em terminologia filosófica, podemos dizer
que, neste significativo texto paulino, está afirmada a capacidade
metafísica do homem.
Segundo o Apóstolo, no projecto originário da criação estava prevista a
capacidade de a razão ultrapassar comodamente o dado sensível para
alcançar a origem mesma de tudo: o Criador. Como resultado da
desobediência com que o homem escolheu colocar-se em plena e absoluta
autonomia relativamente Àquele que o tinha criado, perdeu tal facilidade
de acesso a Deus criador.
O livro do Génesis descreve de maneira figurada esta condição do homem,
quando narra que Deus o colocou no jardim do Éden, tendo no centro « a
árvore da ciência do bem e do mal » (2, 17). O símbolo é claro: o homem
não era capaz de discernir e decidir, por si só, aquilo que era bem e o
que era mal, mas devia apelar-se a um princípio superior. A cegueira do
orgulho iludiu os nossos primeiros pais de que eram soberanos e
autónomos, podendo prescindir do conhecimento vindo de Deus. Nesta
desobediência original, eles implicaram todo o homem e mulher, causando
à razão traumas sérios que haveriam de dificultar-lhe, daí em diante, o
caminho para a verdade plena. Agora a capacidade humana de conhecer a
verdade aparece ofuscada pela aversão contra Aquele que é fonte e origem
da verdade. O próprio apóstolo S. Paulo nos revela como, por causa do
pecado, os pensamentos dos homens se tornaram « vãos » e os seus
arrazoados tortuosos e falsos (cf. Rom 1, 21-22). Os olhos da mente
deixaram de ser capazes de ver claramente: a razão foi progressivamente
ficando prisioneira de si mesma. A vinda de Cristo foi o acontecimento
de salvação que redimiu a razão da sua fraqueza, libertando-a dos
grilhões onde ela mesma se tinha algemado.
23. Deste modo, a relação do cristão com a filosofia requer um
discernimento radical. No Novo Testamento, especialmente nas cartas de
S. Paulo, aparece claramente este dado: a contraposição entre « a
sabedoria deste mundo » e a sabedoria de Deus revelada em Jesus Cristo.
A profundidade da sabedoria revelada rompe o círculo dos nossos esquemas
de reflexão habituais, que não são minimamente capazes de exprimi-la de
forma adequada.
O início da primeira carta aos Coríntios apresenta radicalmente este
dilema. O Filho de Deus crucificado é o acontecimento histórico contra o
qual se desfaz toda a tentativa da mente para construir, sobre razões
puramente humanas, uma justificação suficiente do sentido da existência.
O verdadeiro ponto nodal, que desafia qualquer filosofia, é a morte de
Jesus Cristo na cruz. Aqui, de facto, qualquer tentativa de reduzir o
plano salvífico do Pai a mera lógica humana está destinada à falência. «
Onde está o sábio? Onde está o erudito? Onde está o investigador deste
século? Porventura, Deus não considerou louca a sabedoria deste mundo? »
(1 Cor 1, 20) ? interroga-se enfaticamente o Apóstolo. Para aquilo que
Deus quer realizar, não basta a simples sabedoria do homem sábio,
requer-se um passo decisivo que leve ao acolhimento duma novidade
radical: « O que é louco segundo o mundo é que Deus escolheu para
confundir os sábios (...). O que é vil e desprezível no mundo, é que
Deus escolheu, como também aquelas coisas que nada são, para destruir as
que são » (1 Cor 1, 27-28). A sabedoria do homem recusa ver na própria
fragilidade o pressuposto da sua força; mas S. Paulo não hesita em
afirmar: « Quando me sinto fraco, então é que sou forte » (2 Cor 12,
10). O homem não consegue compreender como possa a morte ser fonte de
vida e de amor, mas Deus, para revelar o mistério do seu desígnio
salvador, escolheu precisamente o que a razão considera « loucura » e «
escândalo ». Usando a linguagem dos filósofos do seu tempo, Paulo chega
ao clímax da sua doutrina e do paradoxo que quer exprimir: « Deus
escolheu, no mundo, aquelas coisas que nada são, para destruir as que
são » (cf. 1 Cor 1, 28). Para exprimir o carácter gratuito do amor
revelado na cruz de Cristo, o Apóstolo não tem medo de usar a linguagem
mais radical que os filósofos empregavam nas suas reflexões a respeito
de Deus. A razão não pode esgotar o mistério de amor que a Cruz
representa, mas a Cruz pode dar à razão a resposta última que esta
procura. S. Paulo coloca, não a sabedoria das palavras, mas a Palavra da
Sabedoria como critério, simultaneamente, de verdade e de salvação.
Por conseguinte, a sabedoria da Cruz supera qualquer limite cultural que
se lhe queira impor, obrigando a abrir-se à universalidade da verdade de
que é portadora. Como é grande o desafio lançado à nossa razão e como
são enormes as vantagens que terá, se ela se render! A filosofia, que
por si mesma já é capaz de reconhecer a necessidade do homem se
transcender continuamente na busca da verdade, pode, ajudada pela fé,
abrir-se para, na « loucura » da Cruz, acolher como genuína a crítica a
quantos se iludem de possuir a verdade, encalhando-a nas sirtes dum
sistema próprio. A relação entre a fé e a filosofia encontra, na
pregação de Cristo crucificado e ressuscitado, o escolho contra o qual
pode naufragar, mas também para além do qual pode desembocar no oceano
ilimitado da verdade. Aqui é evidente a fronteira entre a razão e a fé,
mas torna-se claro também o espaço onde as duas se podem encontrar.
CAPÍTULO III
INTELLEGO UT CREDAM
1. Caminhar à procura da verdade
24. Nos Actos dos Apóstolos, o evangelista Lucas narra a chegada de
Paulo a Atenas, numa das suas viagens missionárias. A cidade dos
filósofos estava cheia de estátuas, que representavam vários ídolos; e
chamou-lhe a atenção um altar, que Paulo prontamente aproveitou como
motivo e base comum para iniciar o anúncio do querigma: « Atenienses ?
disse ele ?, vejo que sois, em tudo, os mais religiosos dos homens.
Percorrendo a vossa cidade e examinando os vossos monumentos sagrados,
até encontrei um altar com esta inscrição: ¨Ao Deus desconhecido¨. Pois
bem! O que venerais sem conhecer, é que eu vos anuncio » (Act 17,
22-23). Partindo daqui, S. Paulo fala-lhes de Deus enquanto criador,
como Aquele que tudo transcende e a tudo dá vida. Depois continua o seu
discurso, dizendo: « Fez a partir de um só homem, todo o género humano,
para habitar em toda a face da Terra; e fixou a sequência dos tempos e
os limites para a sua habitação, a fim de que os homens procurem a Deus
e se esforcem por encontrá-Lo, mesmo tacteando, embora não Se encontre
longe de cada um de nós » (Act 17, 26-27).
O Apóstolo põe em destaque uma verdade que a Igreja sempre guardou no
seu tesouro: no mais fundo do coração do homem, foi semeado o desejo e a
nostalgia de Deus. Recorda-o a liturgia de Sexta-feira Santa, quando,
convidando a rezar pelos que não crêem, diz: « Deus eterno e
omnipotente, criastes os homens para que Vos procurem, de modo que só em
Vós descansa o seu coração ». (22) Existe, portanto, um caminho que o
homem, se quiser, pode percorrer; o seu ponto de partida está na
capacidade de a razão superar o contingente para se estender até ao
infinito.
De vários modos e em tempos diversos, o homem demonstrou que conseguia
dar voz a este seu desejo íntimo. A literatura, a música, a pintura, a
escultura, a arquitectura e outras realizações da sua inteligência
criadora tornaram-se canais de que ele se serviu para exprimir esta sua
ansiosa procura. Mas foi sobretudo a filosofia que, de modo peculiar,
recolheu este movimento, exprimindo, com os meios e segundo as
modalidades científicas que lhe são próprias, este desejo universal do
homem.
Papa João Paulo II

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...